Professora Ligia Bahia, membro da Comissão de Política, Planejamento e Gestão da Abrasco, publicou no jornal O Globo deste sábado, 1º de dezembro, o artigo “Quais Médicos”, no qual discute o peso que o programa Mais Médicos teve em toda sua trajetória e a necessidade de sua ampliação. Confira:
Era presumível que os problemas acumulados de saúde viessem a causar estardalhaço. O estopim foi a saída dos médicos cubanos do SUS. As polêmicas sobre substituição e falta que farão estes profissionais estão sendo mais acaloradas do que a tumultuada recepção que tiveram, em 2013. Há cinco anos, a discussão se concentrou na falta ou suficiência de médicos.
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O Programa Mais Médicos aumentou vagas para os cursos de Medicina e contratou cerca de 20 mil profissionais. Ampliar acesso a medicamentos e a construção de mais unidades de saúde, apesar de prédios e remédios não serem medidas neutras, passam quase como consenso; embora investimentos públicos em obras e aquisição de insumos repercutam sobre os orçamentos e expressem escolhas políticas e técnicas.
Com médicos foi e está sendo diferente. A briga rolou o tempo todo. Por que os médicos cubanos e a lei do Mais Médicos deram e dão tanto o que falar?
Primeiro, pelos efeitos positivos. Mudanças que envolveram os profissionais estrangeiros ampliaram o acesso. Consolidaram o reconhecimento ao direito a ter médicos para moradores em lugares remotos, isolados. E mais, instituiu-se contato com médicos, que, apesar de condições difíceis, perigosas, não faltaram ao serviço, não solicitaram transferência e estabeleceram vínculos sociais e afetivos com pacientes muito pobres.
Entre os aspectos negativos destacam-se o aumento exponencial de escolas médicas privadas e seus previsíveis impactos sobre a má qualidade do ensino, improvisação da rede de suporte aos médicos, financiamento público baseado em bolsas sem critérios de mérito e ruptura do diálogo com associações médicas.
Desse entrechoque ficou a certeza de que será necessário mudar, sem jogar fora o que deu certo. Política de saúde não deve ser descontinuada e pode ser aprimorada. Contar essa história, buscando separar fatos de boatos e discernir aspectos positivos e negativos, facilita delinear alternativas futuras.
Os médicos cubanos foram inseridos em três tipos de locais: cidades e regiões longínquas, favelas com ostensiva presença de traficantes, milícias e intervenções militares e locais relativamente próximos a grandes centros, mas com barreiras e demora para deslocamento, por exemplo, estradas de terra ou engarrafamentos. As soluções para o provimento de assistência nessas localidades são diferenciadas. Isoladamente, o edital para a mera troca de cubanos por brasileiros não resolverá essas lacunas. O Brasil forma poucos médicos generalistas, o interesse pela atenção primária ainda é incipiente, e o mercado de trabalho estimula especialização precoce e a inserção no setor privado.
O médico que já trabalha no município ou arredores pode ser o mesmo que se inscreveu na nova chamada para o Mais Médicos, se esse posto de trabalho lhe pareceu mais atraente, seja pelo maior valor de remuneração, garantia de pagamento ou pela informalidade. A alta rotatividade das equipes profissionais no SUS e no setor privado é um padrão nas grandes cidades.
Substituir os médicos cubanos que estavam nas favelas do Rio de Janeiro ou em municípios paulistas de médio porte requer esforços distintos daqueles necessários para levar assistência a localidades realmente afastadas dos centros urbanos. A prioridade imediata é assistência à saúde de qualidade para áreas remotas nas quais vivem populações rurais, indígenas e ribeirinhas.
É preciso conferir estabilidade a políticas que combinem formação humanitária e cientifica, estímulos à carreira e responsabilidade permanente de universidades públicas pelo envio e rodízio de estudantes, profissionais e professores para núcleos assistenciais satélites vinculados presencialmente e por telemedicina.
Não existe uma bala de prata. Mas podemos organizar alternativas cujo foco seja mais aberto do que o número de médicos e os interesses de empresários da educação. Estudar e propor medidas para avaliação e certificação de estudantes e profissionais de saúde e não aceitar retrocessos nas coberturas assistenciais permitem um reinício mais promissor que seguir preenchendo planilhas e divulgando retumbantes sucessos ou fracassos.