Num país que se mantém no topo do ranking com o maior registro mundial de assassinatos de pessoas LGBTI+, com maior concentração entre travestis e transgênero, e onde o direito ao aborto legal é constantemente atacado, discutir saúde sexual e direitos humanos são necessários marcos legais e conceituais para ampliar mecanismos de proteção social e fortalecer conquistas. A tradução para o português do documento “Saúde Sexual, Direitos Humanos e a Lei” é um importante passo nesse sentido e foi tema da Ágora Abrasco de 20 de agosto.
Coordenador do curso de Saúde Coletiva da Universidade Federal do Paraná (UFPR Litoral) e coordenador do Grupo Temático Saúde da População LGBTI+ (GT LGBTI+/Abrasco), Marcos Signorelli, abriu o painel, que contou também com Martha Souza, docente da Universidade Franciscana (UFN); Daniela Knauth, professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e Integrante do GT Gênero e Saúde/Abrasco, e Alicia Kruger – PresidenTRA da Associação Brasileira de Profissionais pela Saúde Integral de Travestis, Transexuais e Intersexos (ABRASITTI).
O documento da Organização Mundial da Saúde (WHO/OMS) foi lançado em 2015 e é resultado do esforço do departamento de pesquisas da Organização em consolidar estudos baseados em evidências científicas sobre saúde sexual juntamente com o levantamento de legislações e políticas públicas sobre o tema em diversos países, reunindo mais de 500 referências bibliográficas.
A tradução para português foi uma realização interinstitucional organizada no âmbito do GT LGBTI+/Abrasco e reuniu uma equipe de 10 profissionais, entre pesquisadores e tradutores que trabalharam com afinco por cerca de um ano. “Ampliar o acesso ao público que fala português foi a perspectiva de inclusão que nos moveu” apontou Signorrelli.
“Quanto mais ampla a orientação sobre saúde e sexualidade, melhor o cuidado que o usuário e a usuária vão ter quando necessitar dos serviços e equipamentos de saúde” disse Martha Souza ao ressaltar o papel que o documento pode cumprir em conferir maior qualidade na interlocução de profissionais e gestores de saúde com o público.
Essa percepção é visível em especial com a população transgênero e travesti, tema de estudo de Martha em sua tese de doutorado. Por conta dos preconceitos e do desrespeito à privacidade, é alto o abandono aos tratamentos iniciados nos serviços de saúde. “”Que todas, todos e todes tenham maior acesso aos serviços de saúde, a orientações e que possam ser respeitados” encerrou a abrasquiana.
Distinções que mantêm preconceitos: Apesar de a Declaração dos Direitos Humanos ser de 1948, apenas em 1994, na Declaração do Cairo, que há uma menção aos direitos reprodutivos e da sexualidade nos marcos legais, afirmou Alicia Kruger, ressaltando um mecanismo sutil de preconceito na distinção desses direitos e temáticas entre mulheres cis e pessoas trans.
“Quando falamos em saúde da mulher, se pensa em saúde reprodutiva – como aquela mulher vai ter a melhor gravidez? Já quando falamos em mulheres e pessoas trans, são ressaltados os direitos e a saúde sexual – questões referentes à cirurgia de redesignação sexual, hormônios e adequação do corpo. Olhem que dicotomia, para umas tudo de reprodução, para outras, tudo sobre sexualidade. Não deveríamos oferecer ambas as dimensões a todas as mulheres?”
A farmacêutica e pesquisadora em Saúde Coletiva destacou outra distinção na questão do trabalho sexual. “ O exercício do trabalho sexual tem registro legal, mas quem o explora é entendido como criminoso, colocando profissionais à margem. Temos uma sociedade que relega à margem pessoas, direitos e suas discussões. O Estado precisa olhar mais para isso” conclui Alicia.
A importância do documento para outras áreas foi o eixo da fala de Daniela Knauth. “Não é uma discussão meramente moral, ou restrita às pessoas que militam na área da sexualidade, podendo e devendo ser lido por gestores, operadores do direito, docentes, profissionais de saúde, educação e os movimentos sociais”.
Formação refratária à diversidade: A abrasquiana ressaltou que as barreiras que expressam nos serviços vêm da base da formação em saúde no conjunto das áreas disciplinares, tanto do processo de capacitação profissional como na concepção do pensamento biomédico. “São raros os serviços que se dedicam à saúde sexual, e ainda sim, em boa parte são profissionais que não sabem como lidar. Essa questão não faz parte da formação e, mesmo quando tratam de uma infecção sexualmente transmissível, cuidam apenas da doença e esquecem a pessoa que está diante deles.”
Na era da informação, o que choca Daniela é justamente a falta de informação de jovens e adolescentes e ausência de espaços de diálogo. “Vemos um retrocesso desse debate com o crescimento do movimento Escola Sem Partido. O aumento da violência sexual é uma das marcas da pandemia, e as escolas que poderiam ser locais de proteção, onde se poderia identificar sintomas e acionar redes de proteção, não estão funcionando. São questões que evidenciam a atualidade desse documento para além do momento” explicitou a docente parabenizando o Grupo e o conjunto da Associação pela iniciativa. “É fundamental uma sociedade civil que retome o protagonismo na luta por esses direitos” completa Daniela.
Assista à sessão na íntegra: