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Sexualidade e saúde no livro de membro do GT Saúde da População LGBTI+

Nesses atordoantes e sombrios tempos no qual o obscurantismo tenta calar toda e qualquer diferença e impor ameaças e chantagens ao conhecimento e à ciência, obras que jogam luz na articulação entre pensamentos e corpos insubmissos são ainda mais necessárias. O abrasquiano Pedro Paulo Gomes Pereira sabe disso e fará do lançamento de seu livro Queer in the tropics – Gender and Sexuality in the Global South uma aula pública dedicada àqueles que não se submetem às normas. A aula-sessão de autógrafos será na próxima quinta, 15 de maio, na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), e que compõe o calendário de atividades da greve nacional da educação.

Nas próprias palavras do autor, Queer in the tropics “é um livro-experiência que registra as tentativas de respostas às interpelações que me afetaram” numa trajetória de 22 anos de investigação. Os capítulos põem em diálogo etnografias construídas nesse percurso acadêmico e que abordam percepções sobre as relações entre saúde e sexualidades, com maior detalhamento para a potência de sentidos dos corpo das travestis.

“As histórias e teorias das travestis acabaram por me mostrar que modelar corpos implica sempre em indagações. As invenções de corpos não são as mesmas em todos os tempos e lugares e não é possível pensar esses corpos descontextualizados das vivências que os produziram. Os corpos que dou visibilidade em Queer in the tropics apresentam novas formas de descrever o mundo e que estão para além dos problemas de representação” argumenta o professor do Programa de Pós-graduação em Saúde Coletiva da Unifesp e integrante do recém-lançado Grupo Temático de Saúde LGBTI+ da Abrasco.

Ao problematizar as diversas tecnologias e incorporações que atravessam a produção dos corpos das travestis, entra em cena o debate cada vez mais interrompido sobre a Política Nacional de Saúde Integral de LGBT, lançada em 2011. “Os avanços conquistados com muita luta na área de gênero e sexualidade estão sendo continuamente ameaçados. O SUS, uma das maiores política igualitárias do mundo, é alvo constante de ações nefastas. O sistema de seguridade social está sob ataque. Como reagir? O que percebo nesses anos refletindo e agindo na saúde pública do Brasil é a necessidade de persistir em nossas pesquisas, com rigor e dedicação; ampliar os debates, criando cada vez espaços mais inclusivos e democráticos; atuar na pesquisa, defesa e na construção do SUS”, ressalta.

O livro conta com prefácios de Richard Miskolci, também pesquisador da Unifesp e que divide com Pedro Paulo a coordenação do grupo Quereres – Núcleo de Pesquisa em Diferenças, Direitos Humanos e Saúde, e de Judith Butler, professora da Universidade de Berkeley na Califórnia e uma das expoentes do pensamento queer internacional. A autora destaca Pedro Paulo como um qualificado interlocutor acadêmico, o que ele agradece ao trazer as ideias de Butler para pensar nas possibilidades de invenção de novos tempos nos dias atuais. “Há uma ética na filosofia de Butler que talvez possa nos ajudar nessa empreitada: a busca de pensar juntos, em companhia uns dos outros, deixando-nos afetar pelos outros, experimentando outros conceitos. “Na construção desse “pensar juntos” poderemos inventar novas maneiras de estar no mundo que se contraponham aos que temem as diferenças e buscam limitar as imaginações poéticas” aponta o abrasquiano. Leia a entrevista na íntegra:

Abrasco: Como foi o processo de pesquisa para o livro Queer in the tropics?
Pedro Paulo Pereira: O livro é resultado de diversas pesquisas, com início em uma etnografia que desenvolvi no final dos anos 1990, em Brasília, em uma instituição que abrigava pessoas com diagnósticos HIV positivo. Desde então, venho acompanhando a epidemia de aids e nunca mais parei de me envolver com os dilemas da saúde pública no Brasil, pesquisando os itinerários terapêuticos de portadores de aids; a adesão aos antirretrovirais; os caminhos das travestis no sistema de saúde. Nesse percurso, acabei por me deparar com as histórias, as formulações, as performances e as reconstruções corporais das travestis. O tempo foi me mostrando que não se pode parar uma pesquisa quando se quer, já que a experiência etnográfica está dentro de nós. Depois de mais de uma década de conclusão do trabalho de campo, retornei às experiências com as travestis, mas dessa vez em Santa Maria (RS) e São Paulo (SP), o que me levou ao universo das religiões de matriz africana. Enfim, Queer in the tropics é um livro-experiência que registra as tentativas de respostas às interpelações que me afetaram.

Abrasco: O livro discute o corpo das travestis atravessando os serviços de saúde, valendo-se das tecnologias do corpo e do espírito. Se fosse para definir numa ideia sintética, qual o achado que a obra traz sobre esse corpo?
Pedro Paulo Pereira: Acabei por me encantar com as poéticas das travestis com as quais conversei sobre corporalidades e incorporações. Tenho me impressionado com suas construções corporais e com suas formas de levar a vida. Principalmente, aprendi que há filosofias, advindas das religiões de matriz africana no Brasil, com as quais elas interpretam o mundo e suas próprias transformações corporais. Eu me encantei como as formas sofisticadas de agências que as travestis criam para lidar com a exclusão desse poder que estabelece as categorias daquilo que pode entrar no mundo dos possíveis e que coloca seus corpos e suas subjetividades como impensáveis. Em determinado momento, passei a perguntar: Quais articulações construiriam os corpos? Se os corpos são interfaces que vão ficando descritíveis quando aprendem a ser afetados por múltiplos elementos, colocados em movimento por entidades humanas e não humanas, quais seriam esses afetos e quais entidades e mediadores? Como ocorrem as incorporações? Como, enfim, se inventa um corpo? O livro procura refletir sobre os processos de invenção dos corpos das travestis, tomando a ideia de invenção no seu sentido mais forte, o de modelar, atuar, performar, percorrendo algo de sua economia estilística, da fabricação da beleza, da invenção de complexas formas de incorporação em suas experiências de trânsito e de fluxo.

Abrasco: O prefácio de Judith Butler aponta você como um interlocutor acadêmico, em conjunto com leituras decoloniais e interseccionais. Que mundos esses diálogos têm instigado no atual cenário do Sul Global?
Pedro Paulo Pereira: No prefácio, Butler percebe a tentativa que faço de ver como as teorias viajam. Afirmo que essas teorias têm que ser torcidas e não aplicadas. Butler percebe esse movimento e também se encanta com a poética de invenção dos corpos que descrevo. Ela já havia dito que, se as sociedades inventam formas de regular e de materializar o sexo nos sujeitos, e se essas “normas regulatórias” necessitam ser repetidas frequentemente há, contudo, torções e lapsos nesse processo. Há corpos que não se conformam diretamente a essas regras, nunca aderindo às normas completamente. As travestis inventam novas formas de construir o corpo e possuem uma filosofia própria para compreendê-lo. Denomino de poética as performances, o trabalho de reinvenção do corpo, as teorias que acessam para se colocar e se pensar no mundo. É essa poética que me afetou e que busquei descrever, afirmando que temos de “experimentar outros conceitos”. Butler toma esse movimento como central e traz essa expressão para o título do prefácio que escreveu.

Abrasco: Qual sua avaliação sobre as relações das travestis no sistema de saúde e as formas de acolhimento?
Pedro Paulo Pereira: As travestis atuam sobre o corpo com hormônios, silicone e cirurgias, estabelecendo uma negociação constante com profissionais de saúde e com tecnologias. Ou seja, existe uma necessidade e uma busca por serviços de saúde. Mas, há muitas dificuldades no acolhimento. Muitas vezes os serviços não conseguem romper com o círculo de violência ao que as travestis são submetidas, até porque os profissionais de saúde não tiveram uma formação que lhes possibilitem compreender o quadro, como demonstraram, por exemplo, as pesquisas de Martha Souza. Mas há movimentos positivos, que nos mostram bons caminhos a seguir: alguns avanços na política de saúde para a população LGBTI, o surgimento de ambulatórios para pessoas trans, como o exitoso caso de Uberlândia (MG), e mesmo na Unifesp, com o recém-criado NúcleoTrans. O SUS busca se adequar e em muitas UBS há uma nítida preocupação com a saúde da população LGBTI, com as formas específicas de acolhida e referenciamento. São pequenos, mas sólidos passos em direção a uma longa caminhada que temos que construir juntos.

Abrasco: Como analisa o atual debate sobre as sexualidades homoafetivas e transgêneras na saúde pública?
Pedro Paulo Pereira: O atual momento é conturbado. O avanço de grupos anti-igualitários na área da saúde vem se manifestando pela busca de esfacelamento do sistema de saúde – seja por ataques diretos ao SUS, sugerindo sua ineficácia e desorganização ao mesmo tempo em que apoiam modelos de privatização. Esses grupos agem por meio de uma gramática moral que atua contra as propostas de políticas públicas igualitárias e inclusivas como preconizam as diretrizes do SUS. Assim, conquistas como a Política Nacional de Saúde Integral de LGBT ou a portaria que implanta o processo transexualizador em serviços de referência no SUS correm sérios riscos. Há muito a ser desenvolvido para manter e consolidar tais ações e uma das principais questões seria repensar a formação dos profissionais de saúde. De qualquer maneira, as políticas LGBTI interpelam esses profissionais a pensar e atuar no caminho de uma concepção ampliada de saúde.

Abrasco: Como o livro contribui e dialoga com a produção sobre saúde LGBTI no país e, em particular com a agenda de pesquisa do Grupo Temático Saúde da População LGBTI+ da Abrasco?
Pedro Paulo Pereira: Tive o prazer de participar da criação desse novo GT da Abrasco e acredito que Queer in the tropics vem ao encontro do desejo de ampliar a visibilidade de grupos inscritos na gramática das pessoas LGBTI e suas questões específicas ao processo saúde-doença. A reflexão sobre as interseccionalidades entre gênero, orientação sexual, religiosidade e outros marcadores da diferença que impactam na produção e no cuidado à saúde também atravessa tanto o livro como nossos debates, além do fortalecimento da resistência dessas minorias historicamente marginalizadas e cujo cenário atual está sendo marcado pelo desmonte de políticas sociais.

Aula Pública e lançamento do livro Queer in the tropics – Gender and Sexuality in the Global South
Data: 15 de maio, de 9 às 12 h
Local: Anfiteatro João Moreira da Rocha, no 1º andar do Edifício Costabille Galucci da Unifesp
Endereço: Rua Botucatu, 862 – Vila Clementino, São Paulo – SP
Outras informações, acesse a página do Quereres – Núcleo de Pesquisa em Diferenças, Direitos Humanos e Saúde – nas redes sociais

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