É numa situação de crise sanitária que o modelo de proteção social deixa às claras suas prioridades e mecanismos de compensação para os diferentes segmentos das populações de um país. Esse painel foi apresentado na sessão Desafios da proteção social em tempos de pandemia, parte da programação da Ágora Abrasco transmitida em 10 de junho.
Compuseram a sessão Esther Dweck, professora do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IE/UFRJ); Paola Carvalho, assistente social e diretora da Rede Brasileira de Renda Básica; e Eduardo Fagnani, professor do Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas (IE/Unicamp). A coordenação foi conduzida por Cristiani Machado, integrante do Conselho Deliberativo da Abrasco e vice-presidente de Ensino, Informação e Comunicação da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).
A caracterização do cenário econômico e seu rebatimento na política social foi o eixo adotado por Esther Dweck. “A pandemia ressaltou aspectos de imensa desigualdade que já existiam no Brasil; não chegou num cenário exógeno à forma como a humanidade trata seus recursos naturais e sociais” começou a docente, fazendo um arco de acontecimentos de 2013 até o presente momento, mostrando como a deterioração econômica por más escolhas justificou um ajuste social que ataca frontalmente o pacto constitucional, a Emenda Constitucional 95.
“A EC-95 põe um teto declinante, pois pressupõe que o governo federal não pode ampliar suas despesas. A expectativa é que em 10 anos haveria a perda de 5 pontos percentuais, o que significa cerca de 25% do investimento de então nesse período” detalhou Esther.
Ela fez questão de ressaltar que houve tempo para necessário para o governo brasileiro se preparar política e economicamente para a pandemia, com a promulgação das primeiras leis emergenciais ainda em fevereiro. No entanto, ressaltou, as escolhas que orientaram as políticas de proteção social mostraram-se débeis, num governo de uma nota só. “A consequência é um aumento da desigualdade, que necessitaria de um papel relevante do Estado. E o que fez até agora? Anunciou que em 2021 retorna o teto de gastos, e que a austeridade será a tônica” vaticinou a pesquisadora.
“Quem tem direito ao isolamento social?”
Com a pergunta acima Paola Carvalho, iniciou sua participação em forte diálogo com a apresentação anterior. No momento em que o governo federal organizou a proteção social por outras bases distantes da estruturação do Sistema Único de Assistência Social (SUAS), em apenas 2 meses, o Brasil 1 milhão de novos desempregados.
Segundo Paola, a implementação da EC-95 tem provocado um corte de cerca de 30% no orçamento da Assistência, o que levou em três anos a uma redução de 10 milhões de atendimentos nos Centros de Referências de Assistência Social (CRAS). “Se em 2014 ainda víamos ações de busca ativa e a utilização do Cadastro Único como uma articulação da política social e a partir de ações e programas sociais – havíamos chegado a 27 programas – hoje vemos uma redução drásticas” detalhou a assistente social. Atualmente apenas 15 programas compõem o CadÚnico.
Ela explicitou ainda um mecanismo discursivo do atual governo que tem avalizado ações efetivas. “Há dois aspectos implementados pelo governo Bolsonaro. Primeiro, uma criminalização dos mais pobres em relação a todos os programas, como Minha casa, Minha Vida e Bolsa Família, reafirmando que muita gente que recebia o auxílio não necessitava, um discurso senso comum. O segundo foi que, com implementação da EC-95, houve redução dos atendimentos à saúde, o que levou um descadastramento em massa, num projeto duplo de punição dos mais pobres” elucidou.
No entanto, houve grande agilidade para as garantias dos grandes empresários e banqueiros, a quem se destinaram as primeiras leis propostas pelo governo federal. “O Estado Mínimo é só para um lado. É mínimo para quem tem menos” ressaltou.
“A desigualdade da renda é a ponta do iceberg”
Numa intervenção que buscou ampliar a compreensão sobre política econômica e proteção social, Eduardo Fagnani, da Unicamp, iniciou sua fala explicitando o tamanho da desigualdade brasileira. As faixas mais pobres que recebem até meio salário mínimo totalizam 80 milhões de pessoas, quase a população da Itália. É uma população desassistida tanto de renda como de acesso a serviços e cidadania, e a quem não é permitido os cuidados necessários diante do SARS-CoV-2. “Manter o isolamento exige ficar em casa. Mas são milhões de residências com mais de 3 pessoas por cômodo. Tem de lavar a mão, mais de 50 milhões de residência não tem serviços de água encanada e 100 milhões não têm rede coletora de esgoto saneado” ressaltou o pesquisador.
Para ele é necessário um debate na sociedade que estabeleça uma renda que substitua a falta de trabalho para a população de baixa renda e faça a distribuição dos recursos já acumulados pela quarta revolução industrial, responsável pelos processos de automação nos setores industrial e dos serviços. No entanto, ele aponta que esse debate tem várias vertentes. “A renda básica como colocada hoje no debate pode ser um cavalo de tróia” reforçou Fagnani, criticando o documento do Banco Mundo “Um ajuste justo”, que prevê o fim do BPC, do Bolsa Família e da Renda Rural para uma renda básica rebaixada.
“Temos sim de fazer um programa de renda básica, mas que reforce e retome a Constituição de 88. Essa pauta, na verdade, vem desde a década de 1970, já tem 50 anos. Foi implantada, promulgada e estamos lutando para mantê-la” ressaltou o economista, que destacou a importância da construção da institucionalidade do SUS, da assistência social e da educação pública ao longo dos últimos 30 anos, o que garante uma base de funcionamento e resistência.
Ao final, Fagnani destaca a necessidade de um projeto econômico de desenvolvimento que enfrente a questão da desigualdade, não só de renda, mas de acesso a serviços, de desigualdade racial e de gênero. “A macroeconomia tem de convergir nesse projeto, e não uma criminalização”. Dê play e assista à sessão.