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Racismo determina o processo de saúde, doença e morte

Hara Flaeschen sob supervisão de Vilma Reis

“Como as vidas negras acabaram se consolidando no formato de uma política pública? O movimento negro sempre cuidou de si mesmo: nas rodas de samba,nas rodas de mulheres, chás, parteiras, benzedeiras. Isso sempre foi saúde para as pessoas negras. Por que isto não está estruturado nos cânones da Saúde Coletiva?”, questiona Luís Eduardo Batista, coordenador do GT Racismo e Saúde da Abrasco e pesquisador do Instituto de Saúde/SES-SP. Luís foi um dos palestrantes na mesa “Vidas negras – saúde e resistência”, na última quarta-feira (21/11).

Quadros que contam a nossa história

No telão do Salão Internacional, na Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP/Fiocruz), Luís projetou a história – em arte. Em um primeiro slide, a chegada dos portugueses – a clássica imagem das caravelas ao fundo, os índios na beira da praia, lusitanos em pequenos barcos. Em seguida, Iracema – perpetuada em um quadro de 1881 – uma jovem índia nua “para lembrar que é pelo corpo da mulher indígena que se passa a relação dos portugueses com os índios, o cunhadismo”, explica o pesquisador, referindo-se ao antigo costume indígena de incorporar estranhos a sua comunidade, lhes dando uma mulher da tribo como esposa.

Por fim, a Redenção de Cam. O quadro foi levado em 1911 para o Congresso Universal das Raças, em Londres, a fim de ilustrar a população do Brasil naquela época: a senhora negra, mais idosa, tem uma filha parda – que ao se casar com um homem “caipira” (dentre outras definições, era um homem do campo, branco – mas não detentor de posses) tem um filho mais claro. O discurso foi de que só no embranquecimento da população o Brasil seria um país avançado – e daí veio o aceleramento de imigração de japoneses e europeus.

A Redenção de Cam é uma pintura a óleo sobre tela realizada pelo pintor espanhol Modesto Brocos, em 1895

 

Racismo como Determinante Social de Saúde

A conclusão de Luís Eduardo, a partir da Redenção de Cam, é de que as contagens populacionais , a categorização do povo, acontece no Brasil há muito. Entretanto, a inclusão de raça/cor como um determinante social de saúde é muito recente: “A gente lia Juan César Garcia, que dizia que as desigualdades econômicas e estruturais determinavam o processo de saúde e doença; Asa Cristina Laurell, que dizia que a inserção no mercado de trabalho determina o processo de saúde e doença; Cecília Donnangelo, que falava sobre a relação médico e paciente. Se no campo da Saúde Coletiva a gente estava falando que os fatores sociais , econômicos, políticos, culturais, ambientais, sociais, econômicos e políticos determinam o processo de saúde e doença, não podíamos começar a pensar que para a população negra essas condições são piores [já que as pessoas negras apresentam os piores índices em todas estas questões] ? Mas a raça se confundia com a questão socioeconômica – não estudava-se especificamente”.

O primeiro passo para entender-se racismo enquanto determinante social de saúde foi em 1995, quando durante a Marcha Zumbi de Palmares, manifestantes conseguiram do governo Fernando Henrique Cardoso a criação do Grupo de Trabalho Interministerial para a Valorização da População Negra. Em 2005, o Sistema de Informação sobre Mortalidade (SIM) ganhou informações de raça/cor (branco, preto, pardo, amarelo e indígena) – mas, neste ínterim, as pesquisas já apontavam que enquanto brancos e amarelos morriam mais por complicações respiratórias, endócrino nutricionais, problemas no aparelho circulatório e outras doenças mais sérias, a população preta morria, principalmente, por complicações no parto, doenças infecciosas e parasitárias. Causas evitáveis.

O abrasquiano cita em suas referências Maria do Carmo Leal, e sua pesquisa Nascer no Brasil , que comprova como mulheres negras têm filho mais cedo e em maior número, são maioria na maternidade solo,  sofrem mais com pré-natal inadequado (menos consultas, maior tempo de espera para serem atendidas), têm menos privacidade no parto e pré-parto, correspondem ao maior número de mulheres em trabalho de parto não aceitas na primeira maternidade que procuram, e, apesar de terem mais partos vaginais, sofrem mais violência obstétrica.

Política Nacional de Saúde Integral da População Negra

A partir do entendimento de que o racismo estrutura a sociedade, e de que as dificuldades de ascensão da população negra, desvantagens históricas, menor escolaridade, menor renda, condições de trabalho mais precárias, miséria material, isolamento social e restrição da participação política dos negros no brasil estão ancoradas por este racismo estrutural – que determina o processo de doença, saúde e morte – é que os olhares se voltaram ao princípio do SUS, a fim de pensar uma política para dar resposta a estes problemas. Assim surge a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN), elaborada em 2006 e instituída pelo Ministério da Saúde em 2009 –  produção científica para subsidiar política, gestão e mudanças na sociedade.

Considerando que esta Política foi aprovada no Conselho Nacional de Saúde – CNS e pactuada na Reunião da Comissão Intergestores Tripartite – CIT, o pesquisador surpreendeu os ouvintes ao anunciar que de 5570 municípios brasileiros apenas cerca de 50 tenham implantado, de fato, a PNSIPN.

“Ainda que tombemos algumas: não vão passar por cima de nós”

Altamira Simões, Conselheira Nacional de Saúde, também participou da mesa – e fez uma emocionante fala guiada pelo tema “Caminhos do continente africano até a pátria violadora”,  traçando paralelos entre a pobreza e a miséria – que assolam as vidas negras no Brasil hoje – e os navios negreiros, que vinham com cativos do continente africano: “Os corpos ainda são marcados pelas doenças que cortam nossa realidade. A conservação da pobreza e miserabilidade da população negra é visível através dos maiores índices de desemprego, da população de rua, ou de usuários da saúde mental – como resiste, sendo tratado assim [com racismo] sem adoecer?”.

Mas Altamira também sopra resistência: “Desde os navios os negros que escolhiam pular no mar, para não serem escravizados, já faziam isso como estratégia de romper violências. O racismo não dá trégua, nem na cidade nem no campo, mas sempre houve enfrentamento. Sempre houve luta de mulheres, o feminismo não é novo, pra nós: quando morre o filho de alguém, nas favelas, as mulheres choram juntas. O ninguém solta a mão de ninguém não é recente, temos a roda de xirê [dança utilizada em ritual de Candomblé]. Ainda que tombemos algumas: não vão passar por cima de nós”.

“A mistura de academia e movimentos sociais é o futuro do SUS” 

Além de Luís Eduardo e Altamira  – que também é do Coletivo de Lésbicas e Mulheres Bissexuais Negras – Candances, compuseram a mesa a pesquisadora Vera Lúcia Luzia (ENSP/Fiocruz), como coordenadora do debate, e Mayra da Cruz Honorato, representando o Coletivo Negro da Fiocruz.

Em entrevista à Comunicação da Abrasco,  Luís afirmou que esta mistura de academia com movimentos sociais – referindo-se à mesa que participou – é o futuro do SUS: “A redução das iniquidades no SUS não será feita unicamente pelos sanitaristas da academia ou pelos gestores, terá de se dar numa ação conjunta com os movimentos sociais, com os mais jovens e outros setores da sociedade. A Politica Nacional de Saúde Integral da População Negra foi criada pelo movimento negro, Rede de Religiões Afro-Brasileiras e Saúde; Associação de Portadores de Doença Falciforme; gestores do Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde, Conselho Nacional de Secretários de Saúde e técnicos do Ministério da Saúde, portanto, a atuação conjunta com os movimentos sociais é histórica e estratégica”.

Crescimento da discussão Racismo e Saúde na Saúde Coletiva

Enquanto coordenador do Grupo Temático Racismo e Saúde da Abrasco, ele também comentou o crescimento da discussão dentro da comunidade da Saúde Coletiva – que, potencializada através do GT, agora extravasa e expande-se: “A temática do racismo e saúde vinha aparecendo nos congressos abrasquianos – todavia eram só algumas mesas redondas, mais no fim da programação. Entretanto, na construção do último Abrascão (12º Congresso Brasileiro de Saúde Coletiva), com a participação dos coordenadores do GT na Comissão Científica, houve diálogo com o Fórum de Graduação em Saúde Coletiva da Abrasco; com a Comissão de Ciências Sociais e Humanas em Saúde; com o GT de Educação Popular; o GT Saúde Mental e o GT Gênero – e, assim, elaboramos a realização de atividades em conjunto. Articulamos de tal forma que a interseccionalidade de raça/cor, gênero, classe, geração, sexualidades pudessem estar presentes nas mesas redondas, palestras e grandes debates.

O congresso, ao propor o diálogo entre produção acadêmica e movimentos sociais, também foi fundamental para o GT, cujos participantes têm pautado sua produção científica a fim de subsidiar os movimentos sociais e a gestão do SUS. As mesas do Abrascão receberam mulheres negras, importantes mobilizações (como a Rede Nacional de Religiões Afro-Brasileiras e Saúde, Associação de Pessoas com Doença Falciforme, Negre – Coletivo auto-organizado de estudantes de medicina negras/os – dentre outros). Com isso ganhamos todos, o Congresso, o GT Racismo e Saúde e a Abrasco”, conclui.

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