Em meio às revisões das políticas de saúde mental e de drogas, a repórter da Radis, Ana Cláudia Peres, foi conhecer um Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas no Rio de Janeiro, onde a liberdade é parte da terapia. A repórter conta que o imóvel, de muro vazado e vista para a Igreja da Penha, no Rio de Janeiro, bem pode ser definido como um local de acolhida, mas também chamado Centro de Atenção Psicossocial (Caps). “A sigla passou a fazer parte do vocabulário dos brasileiros há pelo menos trinta anos, quando o movimento da Reforma Psiquiátrica propôs um novo olhar sobre a loucura — o que significava, entre outras iniciativas, substituir as velhas práticas em saúde mental, a exemplo dos hospitais e manicômios, por um modelo com diretrizes mais humanizadas e voltado para a inclusão”.
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Recentemente, as políticas públicas direcionadas à saúde mental mudaram os princípios que, há dezoito anos, orientaram a Lei 10.216, que instituiu a Reforma Psiquiátrica brasileira. A gota d´água veio no dia 4 de fevereiro, quando o Ministério da Saúde divulgou um documento sob a denominação de Nota Técnica com Esclarecimentos sobre as mudanças na Política Nacional de Saúde Mental e nas Diretrizes da Política Nacional sobre Drogas.
Segundo a Radis, entidades como a Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) consideraram que o documento feria os postulados da reforma ao garantir, entre outros pontos, a inclusão de hospitais psiquiátricos nas Redes de Atenção Psicossocial, o financiamento para compra de aparelhos de eletrochoque (eletroconvulsoterapia ou ECT), a possibilidade de internação de crianças e adolescentes, abstinência como opção de tratamento a usuário de drogas e, ainda, a valorização das chamadas comunidades terapêuticas. Após a polêmica gerada em torno dos pontos abordados, a nota foi retirada do site do Ministério da Saúde. Mas isso não significa que esteja fora de discussão. O ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, disse à imprensa que o teor do documento será reavaliado pela nova Coordenação Geral de Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas.
O coordenador do Laboratório de Atenção Psicossocial da Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp/Fiocruz), Paulo Amarante – também do Grupo Temático Saúde Mental da Abrasco – argumentou que “a nota é parte de uma estratégia consciente e bem determinada de desmonte do Sistema Único de Saúde (SUS) e da reforma psiquiátrica e de restauração e ampliação dos interesses privados que atuam na saúde pública”.
Pelo Caps Miriam Makeba, visitado pela Radis, transitam diariamente dezenas de homens e mulheres das mais diferentes idades. São 520 pessoas cadastradas, e dessas, pelo menos 120 acessam os serviços regularmente. Para acolhê-las, há uma equipe multidisciplinar formada por 43 profissionais entre médicos, psiquiatras, enfermeiros, psicólogos, assistentes sociais. Como se trata de um modelo de Caps III, a unidade funciona 24 horas por dia, de segunda a segunda, e atende a usuários de álcool e outras drogas (por isso se chama Caps-AD), garantindo leitos para hospitalidade noturna de até quinze dias.
Um dos entrevistados pela revista foi Marcelo, o confeiteiro. “Só dou entrevista se puder dizer meu nome e ser fotografado. Aqui não tem esse negócio de esconder o rosto, não”, disse ele. Marcelo Bezerra Cavalcante estava ansioso para contar a sua história. Antes de conhecer a “maldita da cocaína”, era confeiteiro, fazia pães. Pão-tartaruga, pão-coração, que ele gostava de levar para casa para presentear a mãe e o irmão todos os dias, depois do trabalho na padaria, em que tinha carteira assinada e salário certo ao final do mês. “Mas a droga me levou para o buraco. Fui ao fundo do poço, ao lamaçal mesmo”, lamenta. Chegou a ser preso e, ao deixar o presídio, dormiu sob passarelas e viadutos. Às margens de rodovias. Um dia, apavorado, pensou: “Essa aqui não é minha vida. Não posso deixar acontecer isso comigo”. Faz três anos e dois meses que ele conheceu o Caps e começou a se “encontrar de novo”. “Dei um giro na minha vida. As pessoas me acolheram com carinho, amor, atenção. Eu era um cara muito agitado, nervoso. Agora, voltei a ser tranquilo”, diz Marcelo. Morador do Complexo do Alemão, favela na Zona Norte do Rio, ele passou a frequentar diariamente o Caps Miriam Makeba em busca de cuidado.
Aos 48 anos e disfarçando o sorriso largo comprometido pelo uso da droga, Marcelo faz planos. Voltou a se relacionar com a família, comemora os documentos tirados recentemente e o cartão fidelidade recém-adquirido em uma lojas de departamento. “Não desaprendi a fazer pão. Ainda levanto uma padaria sozinho”, garante. “Ergui a minha cabeça para fora das drogas. Não quero mais usar de jeito nenhum. Essa é minha vontade, minha determinação”.
De acordo com a reportagem, o Miriam Makeba é um dos 331 Caps-AD do país. Eles são distribuídos estrategicamente nas capitais e municípios com população igual ou superior a 200 mil habitantes, como determina a legislação. Em toda a cidade do Rio de Janeiro, são apenas sete Caps-AD. Ao se estabelecer, há cinco anos, numa simpática rua do bairro de Ramos, o Caps teve dificuldades com a vizinhança. “As pessoas tinham preconceito, queriam nos tirar daqui”, lembra o coordenador do Caps, Rodrigo Pereira. “Mas, depois de algumas visitas e muitas conversas, as coisas foram mudando no imaginário da população”. Um tempo depois, o Caps foi convidado para realizar uma oficina na quadra da Imperatriz Leopoldinense, escola de samba a um quarteirão dali.
“Sem democracia, o manicômio vence”
A Radis também entrevistou Edmar Oliveira, psiquiatra e ex-diretor do Instituto Municipal Nise da Silveira. “Não por acaso, participou ativamente do movimento da Reforma Psiquiátrica e da implantação dos primeiros Caps no Brasil. Quando esteve à frente do antigo e temido Hospital do Engenho de Dentro, no Rio, mudou o nome da instituição para Instituto Municipal Nise da Silveira, em uma tentativa de homenagear a médica que revolucionou o tratamento em saúde mental”. A loucura, para ele, deve ser discutida com a comunidade.