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Relembrar e viver

Vilma Reis com informações de Maíra Mathias (enviada a João Pessoa) - EPSJV/Fiocruz

“Quando pedimos pra ninguém soltar a mão de ninguém é porque já demos as mãos” Foto Roan Nascimento

Exatos dois quilômetros separam a central de aulas, na Universidade Federal da Paraíba (UFBA), da Praça da Paz no bairro dos Bancários em João Pessoa. A distância não é grande, mas como parte do percurso passa por uma movimentada rodovia de quatro faixas, provocou surpresa ver cerca de mil pessoas dispostas a percorrê-la. O ato político, cultural e – frise-se – científico fazia parte da programação do 8º Congresso Brasileiro de Ciências Sociais e Humanas em Saúde, mais conhecido como Abrasquinho. E entre uma saia rodada ao ritmo do maracatu ali e um grito em defesa do SUS acolá que a Abrasco, a Associação Brasileira de Saúde Coletiva, mostrou vitalidade no momento em que chega aos 40 anos de existência.

No dia anterior à manifestação, 27 de setembro, foi a hora de relembrar essa trajetória. Era a data exata do aniversário de criação da Abrasco. Para comemorar, a entidade conseguiu reunir quase todos os seus ex-presidentes e ex-secretários executivos – nomes que, assim como a Associação, se confundem com a história do Sistema Único de Saúde – SUS.

A fundação da Abrasco aconteceu em Brasília, na sede da Opas, a Organização Pan-americana de Saúde. “Não foi por casualidade”, garantiu Renato Tasca, coordenador de sistemas e serviços de saúde do organismo no Brasil. Segundo ele, o próprio organismo, braço regional da OMS, tinha clareza de que era necessário construir relações fortes com organizações e entidades que produzissem conhecimento. “Não há cooperação técnica ou ação de intercâmbio real se a ciência não ilumina o caminho”, sentenciou. Na época, o representante da Opas por aqui era o brasileiro Carlyle Guerra de Macedo, que convocou a reunião.

“Ali nos debruçamos, 53 pessoas, na reflexão sobre a saúde coletiva no país”, relembrou Arlindo Fabio Gómez de Sousa, ex-presidente da Abrasco e pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz – Fiocruz. Naquele dia 27 de setembro de 1979, foi eleita por unanimidade uma diretoria provisória que ficou à frente da associação até a aprovação de seus estatutos – o que aconteceu em 29 de abril de 1981. “Houve uma nova reunião na Opas, desta vez com a participação de um grupo maior, 80 membros. Aprovamos os estatutos e elegemos a primeira diretoria”, contou Arlindo, ilustrando a dimensão dessa aventura com um exemplo bem concreto: “Naquela época, fazíamos vaquinha para comprar selos e mandar a correspondência da Abrasco”.

Mesmo sem recursos financeiros, a associação conseguiu realizar naquela primeira gestão 14 encontros – eventos que foram importantes para definir suas características principais: uma entidade plural, em sintonia com os movimentos sociais e independente em relação ao Estado, exemplificou por sua vez Ligia Vieira, da Universidade Federal da Bahia, a UFBA, que coordenou um longo estudo que trata da gênese da saúde coletiva e virou livro,  publicado no ano passado. É a pesquisadora quem aponta que a criação da Abrasco já tinha começado a ser articulada algum tempo antes – e a mola propulsora foi justamente a necessidade sentida por muitos profissionais de mudar os rumos da forma de pensar e fazer saúde no país.

O que é saúde coletiva?

O resultado dessa discussão foi não só a criação de um espaço institucional – a Abrasco – mas o surgimento de um campo de conhecimento científico – a saúde coletiva –, composto por três subáreas: epidemiologia; planejamento de políticas e gestão; e ciências sociais e humanas.

“A saúde coletiva surge a partir do desejo por uma clínica de novo tipo, apoiada em uma teoria social da saúde e articulada a um projeto mais amplo de reforma sanitária que não se limitava a mudanças administrativas. Essa movimentação acontece, em boa medida, no interior dos departamentos de medicina preventiva. Ao mesmo tempo, tem participação de cientistas sociais – na maior parte sociólogos – que já vinham se debruçando sobre a saúde como objeto de pesquisa e acabaram contribuindo com as bases teóricas para esses esforços”, contextualizou Ligia.

O marco inicial dessas discussões é julho de 1978, quando aconteceu na UFBA um encontro nacional dos programas de pós-graduação. Naquela instituição surgiu o primeiro mestrado em medicina de família e comunidade – uma iniciativa então financiada pela Fundação Rockefeller que, usando de sua influência, foi contra o surgimento de uma ‘medicina social’ no Brasil por achar que isso aproximaria o país do socialismo. “O nome saúde coletiva surgiu como substituto aparentemente neutro”, observou Ligia.

Pouco tempo depois, em dezembro de 1978, essa discussão avançou mais ainda em outra reunião feita em Ribeirão Preto e, em abril de 1979, a partir de novo encontro realizado em um hotel no Rio de Janeiro onde se discutiu o rascunho do regimento que serviria para a criação da Abrasco em setembro daquele mesmo ano.

Com a nova entidade, os debates sobre o que seria saúde coletiva se aprofundaram. E a união de forças em torno da mudança social também, já que a Associação surge no campo científico três anos depois do Centro de Estudos Brasileiro em Saúde, o Cebes, fundado como força política. E ambas confluem para o que ficou conhecido como o Movimento da Reforma Sanitária Brasileira, que conseguiu inscrever um sistema público e universal de saúde na Constituição Cidadã de 1988.

Mas como evoluiu a saúde coletiva nos últimos 40 anos? Ligia Vieira compartilhou alguns números com os participantes do Abrasquinho: entre 1979 e 2009 – ano do fim da sua pesquisa – o número de programas de pós-graduação em saúde coletiva havia pulado de seis para 48. Hoje, são nada menos do que 95 programas com 1,7 mil docentes aproximadamente. Em 2008, a área ganhou mais força com a criação do curso de graduação em saúde coletiva, lembrou ela. E os mestrados profissionais na área aumentaram de 13, em 2009, para 41 este ano. “Se no início o campo era dominado pelos médicos, progressivamente essa morfologia se modificou. Em 2009, os docentes médicos não eram mais a maioria nos programas – o que tem várias implicações”, afirmou a pesquisadora da UFBA.

Dialogando nas (e sobre) diferenças

Mas, na visão de alguns jovens profissionais da área, a saúde coletiva ainda tem algumas arestas a aparar, especialmente em relação ao papel das ciências humanas e sociais. Na plenária final do Abrasquinho, foi aprovada uma moção pedindo que o assunto seja mais debatido daqui para frente. Isso porque apesar de o peso dos médicos nos programas de pós-graduação ter diminuído, como apontou Ligia Vieira, os trabalhadores que têm graduação em saúde ainda são maioria. “E as disciplinas de ciências sociais e humanas são aquelas com menos tempo nos currículos. Aparecem nos primeiros períodos e depois somem”, comparou a historiadora Fernanda Martins, que é professora-pesquisadora da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz). Junto com das sociólogas Luanda Lima, também professora-pesquisadora da EPSJV/Fiocruz, e Michelle Souza, da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (ENSP/Fiocruz), ela conduziu um fórum e uma mesa de debate sobre o assunto.

De acordo com os participantes do fórum, há uma predominância nos programas de pós-graduação e mesmo nos cursos de graduação em saúde coletiva da epidemiologia e do planejamento. “Não há interdisciplinaridade, mas hierarquização desses saberes. As ciências sociais e humanas estão sendo usadas de forma instrumentalizada”, criticou Luanda. A moção destaca justamente esse projeto incompleto, apontando para o fato de a saúde coletiva ter surgido como uma tentativa de superar essas separações e pensar a saúde fora do binômio ‘saúde-doença’. “Nossa ideia não é chegar no topo, mas desenvolver a interdisciplinaridade que está na origem da saúde coletiva”, disse Michelle.

O tema da oitava edição do Abrasquinho foi justamente a ‘Igualdade nas Diferenças’. O presidente do congresso e coordenador da comissão de ciências sociais e humanas da Abrasco destacou na abertura do evento: “As ciências sociais e humanas, a epidemiologia e o planejamento são iguais, já que todas compõem a saúde coletiva; e diferentes porque todas contribuíram de forma distinta e em momentos variados”.

Mas as diferenças também aparecem na disputa para fora do campo da saúde coletiva, particularmente no contexto atual. “Hoje, a autoridade sobre os problemas de saúde da população e as políticas públicas está em disputa com campos que fazem fronteira com a saúde coletiva”, constatou Ligia Vieira, lembrando primeiro de epidemias de arboviroses que trouxeram à cena pública outros saberes, mais propriamente identificados com uma compreensão mais biológica dos fenômenos, como a infectologia. Mas também lembrando sobre a força do setor privado no cenário brasileiro.

Para Tatiana Wargas, pesquisadora da ENSP/Fiocruz, é fundamental resgatar a história para entender as condições, disputas e até invisibilidades daquilo que foi possível avançar no projeto da Reforma Sanitária em cada contexto. Ela lembrou: “A saúde coletiva surgiu no interior do grupo médico. O que isso significa e traz de questão até hoje? O protagonismo das escolas médicas, em especial dos departamentos de medicina preventiva, com pessoas engajadas na construção de outra formação e projeto de saúde fez toda a diferença na saúde coletiva no Brasil e do que a gente hoje defende como SUS. Isso não se deu de forma interna a esses departamentos, mas com mobilização política, capacidade de interação para fora – com partidos, grupos, movimentos, lideranças e uma série de atores”. Mas isso tudo, confrontou ela, não surgiu sem uma resistência importante por dentro desses mesmos departamentos, vindo de outro conjunto de atores que não achavam ser este o melhor caminho para a medicina.

A pesquisadora da ENSP/Fiocruz também observou que, por seu turno, o campo da saúde coletiva não ficou imune à especialização e à fragmentação, o que acontece entre os anos 1980 e 2000 – inclusive com o peso maior de uma área sobre outras. “Se a saúde coletiva no momento original – ainda que restrita ao campo de formação e ao olhar da medicina – nasceu comprometida com a mudança social, o que se apresenta como desafio hoje? O que está aí há tempos e talvez tenha ficado distante do campo por conta do rumo para o acadêmico e a especialização?”, provocou. Para Tatiana, é preciso retomar o que estava na origem: a  capacidade de colocar em discussão as práticas.

(Reportagem publicada originalmente no site da EPSJV/Fiocruz)

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