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Resposta certa para pergunta errada – artigo de Lígia Bahia

A crítica à cópia do programa de saúde apresentado pelo PSDB de 2014 no documento Travessia Social e o falso moralismo em questionar a dimensão política da saúde são alguns dos elementos do texto Resposta certa para pergunta errada, de Lígia Bahia, professora do Instituto de Estudos em Saúde Coletiva da UFRJ (IESC/UFRJ) e integrante da Comissão de Política, Planejamento e Gestão da Abrasco, publicado originalmente no jornal O Globo. Confira abaixo na íntegra ou acesse o original aqui.

A maioria das polêmicas sobre saúde não se refere a fatos. Dificilmente, haverá discordâncias sobre a menor expectativa de vida de populações expostas a piores condições de vida. O dissenso é se as desigualdades de adoecer e morrer refletem inferioridade biológica, estimulam ou decorrem de déficits culturais ou injustiças sociais. O pau quebra porque diferentes perspectivas de observação, percepção sobre problemas de saúde, quais são e como se conectam causas e efeitos acompanham-se de propostas e ações simétricas ao diagnóstico para resolvê-las.

+ Mario Scheffer: “Se não resolver o financiamento da saúde, qualquer proposta é firula”

Problemas de saúde nem sempre estão ao alcance de escalas físicas visíveis ao olho nu, não são desencadeados apenas dentro dos corpos biológicos, o “corpo” social estabelece padrões de morbi-mortalidade que modificam características inatas. Dependendo da explicação, o número elevado de assassinatos de jovens negros pode ser considerado estatística para a Justiça criminal ou informação de saúde pública. As consequências para a ação são a coibição e o aumento da probabilidade de prevenção. Certamente, ambas alternativas são necessárias. Mas, não basta combiná-las na retórica. Estudos, trabalho técnico e participação social são vitais para que políticas sociais não se transfigurem em trocas de favores.

Saúde relaciona-se diretamente com vidas concretas, gerações históricas. A predileção para jogar com acaso e contingência é um recurso dos deuses e figuras míticas. O destino e a sorte não têm a última palavra quando se conhecem teorias e métodos que permitem às sociedades aumentar as chances para que a todos seja assegurada uma vida saudável e digna. Dizer que está se politizando a saúde como se ignorar a política não fosse em si uma tomada de posição ou misturar no papel um pouco de público com muito privado não garante bons resultados. A responsabilidade de cientistas, pesquisadores e políticos é estudar e buscar soluções para problemas relevantes.

A crise econômica mundial de 2008 não é um álibi genérico. As causas da falta de vacina e penicilina nas unidades de saúde, fechamento de enfermarias, leitos, maternidades públicas em um país que constitucionalmente tem SUS são intoleráveis. Estamos indo para trás, a “travessia” para a melhoria da saúde de qualquer governo deveria ser séria e racional.

A proposta programática para a saúde de Michel Temer é um plágio da plataforma de Aécio Neves. Porém, deve-se conceder o devido desconto ao gesto. Os programas para a saúde dos mais diferentes partidos apresentados em períodos eleitorais distintos são quase primos-irmãos. Portanto, o reparo não é a semelhança do parentesco, e sim a desatenção dos copistas à situação objetiva da saúde em 2016. A montagem de acordos com empresários, entidades médicas e especialistas em saúde pública realizada pelo PSDB em 2014 perdeu a validade.

O modelo “SUS etéreo”, um fantasma bonzinho que teima em permanecer entre os vivos e parcerias público-privadas corporificadas em organizações sociais e em outros formatos de transferência de recursos públicos para grupos privados deu errado. As organizações sociais foram protagonistas das denúncias e comprovações de corrupção e empresas de planos de saúde citadas em delações. A privatização pode ou não ser a resposta certa para a pergunta sobre aumento de competitividade em áreas que transacionam mercadorias. Contudo, saúde e mercado nunca colaram bem. Mesmo um jargão aparentemente inteligente como investir na saúde não decolou. Saúde não pode ser vendida, nem estocada. A adoção de estilos de vida saudáveis ou compra de planos privados que deveriam atenuar gastos assistenciais catastróficos das famílias não significa retorno em saúde.

Tem discurso que pode convencer, mas nada explica. Propor a livre concorrência, afirmar a ineficiência das instituições públicas, aludindo sempre ao bom funcionamento do mercado e à falência do SUS, mas ironicamente elaborar e impor esquemas regulatórios aos governos não são atitudes de quem se preocupa com saúde. A banha de cobra, uma das mais populares mezinhas para o tratamento de diversas maleitas baseia-se em uma das regras da medicina tradicional: animais assustadores e perigosos seriam fontes de tratamentos poderosos. A metáfora continua fazendo sentido, mas o óleo de cobra perdeu valor medicinal. A moderna saúde pública contribuiu para alterar as probabilidades de sofrer, adoecer e morrer em determinadas condições e idade. Portanto, é preciso que as ações de saúde sejam conscientes, coordenadas e informadas por conhecimentos científicos.

A disputa não é entre a ciência e a política. Sistemas de saúde em sociedades democráticas são inerentemente politicamente orientados. Mas a extensão do controle político-partidário e dos lobbies varia e determina se os orçamentos públicos serão destinados para a saúde ou a imposturas. A interrogação sobre a agressividade da serpente deve ser respondida positivamente. No entanto, a pergunta sobre o que fazer com a saúde e quem o fará não admite como solução a transformação da área em depósito de ferozes organizações e parlamentares envolvidos na Lava-Jato. Comprovadamente, políticas e programas de saúde podem reduzir ou incrementar desigualdades. Caracterizar evidências, teorias e fatores de sustentação de políticas de saúde no médio e longo prazo como insignificantes e valorizar apenas a força dos interesses particulares e mercantis tornam a própria condição humana insignificante.”

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