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Rosana Onocko-Campos fala sobre estudos qualitativos como ferramenta de pesquisa no campo da Saúde Mental

A edição reúne estudos que são frutos de cinco anos de trabalho entre vários grupos de pesquisa brasileiros e canadenses e que contou com financiamento do International Development Research Centre (IDRC). Para tal especial empreendimento, o corpo editorial da C&SC convocou Rosana Onocko-Campos, membro do Conselho da diretoria da Abrasco e professora associada do departamento de Saúde Coletiva da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp para ser editora convidada.

Os artigos valorizam levantamentos e investigações qualitativas, narrativas e participativas que buscam trazer novos olhares à área. Para Rosana, tais propostas agora publicadas têm a contribuição de “realizar acertos nos procedimentos científicos de forma a apresentar pesquisas coerentes com princípios ético-políticos”. Leia a entrevista e explore a revista na base Scielo e na área restrita dos Associados Abrasco.

Abrasco: As pesquisas em psiquiatria mantiveram-se por muito tempo restritas unicamente a investigações medicamentosas e análises genéticas. Qual a importância de destacar novas estratégias de investigação na área? 

Rosana Onocko-Campos: Precisamente pela necessidade de articular coerentemente a temática e a metodologia das pesquisas com os princípios norteadores da Reforma Psiquiátrica no país e no mundo atual. Quando se fala, por exemplo, em estudos de eficácia clínica do tipo III ou outros, raramente se analisa que a adesão a uma determinada posologia é tão determinante da eficácia como os aspectos de biodisponibilidade ou outros efeitos bioquímicos. Mas, de uma maneira geral, a própria velocidade de mudança nas relações interpessoais e familiares no mundo contemporâneo faz que não disponhamos de muitas hipóteses prévias a serem testadas por métodos quantitativos clássicos. Isso destaca a importância das pesquisas qualitativas que podem permitir descobrir por que as pessoas agem como agem e pensam como pensam.

Abrasco: Por que, mesmo após a consolidação das pesquisas qualitativas e de outras abordagens calcadas nas experiências e narrativas de pacientes e/ou institucionais, ainda é grande a resistência de uma parte da medicina em utilizar esses elementos em pesquisas e estudos?

Rosana Onocko-Campos: A medicina atual está muito marcada pela biologia e suas descobertas. E isso é bom em vários aspectos, principalmente pelos avanços e descobertas que esse tipo de abordagem tem permitido. O problema é quando se apresenta um método como o único legítimo e se desqualifica outras contribuições. No mundo inteiro, cada vez mais revistas prestigiosas têm acolhido estudos de tipo qualitativo, pois eles têm uma capacidade de exaurir a experiência humana em relação ao adoecimento e o uso de tecnologias, entre outros aspectos, o que nenhum caso controle pode produzir. Contudo, também deve ser dito que estudos qualitativos mal desenhados ainda abundam e não contribuem para a legitimação da abordagem no campo médico.


Abrasco: Que mudanças deve haver na formação médica geral e na especialidade psiquiátrica para valorizar este cruzamento de formas de fazer ciência em Saúde Mental?

Rosana Onocko-Campos: Temos insistido em que a forma de proceder cientificamente deve ser alinhavada aos pressupostos éticos e políticos que nos movem como pesquisadores e seres humanos. Então, estudos qualitativos e narrativos permitem aproximarmo-nos da alteridade com uma maior horizontalidade e abertura ao universo representacional daquele que nos parece diferente, às vezes até esquisito, incompreensível.

Os alunos de medicina têm me parecido bem sensíveis a essas questões quando apresentados a elas. No entanto, são raras as vezes que eles têm oportunidade de se aproximar dessas abordagens, além de serem permanentemente alertados sobre a importância dos estudos quantitativos, aprendendo inclusive a avaliar a qualidade destes, porém não a dos desenhos qualitativos.

Abrasco: Em que aspectos o uso dessas metodologias podem colaborar na gestão de serviços de saúde, tanto gerais como os destinados à Saúde Mental?

Rosana Onocko-Campos: Temos inserido essas metodologias em contextos de pesquisas avaliativas e participativas, tentando envolver em vários casos os próprios trabalhadores e/ou gestores. Trabalhar dessa maneira pode outorgar à investigação um caráter de avaliação formativa, mas também contribui no sentido de dar voz àqueles que quase nunca têm. É muito diferente trazer a voz dos usuários no sentido de uma avaliação complexa de realizar “estudos de satisfação”. Perguntar a uma pessoa como gostaria de ser tratada ou o que acha necessário para seu bom tratamento difere de saber se o ela está satisfeita ou não. Há vários trabalhos apontando que os usuários tendem a avaliar bem um serviço só pelo fato de terem tido acesso.

Abrasco: De que formas esta compreensão de ciência, que articula dados concretos e formas de exploração qualitativas e narrativas, podem contribuir para os avanços da vida social e para a atuação dos movimentos sociais, muitas vezes criticados por não apresentarem propostas e/ou políticas públicas efetivas?

Rosana Onocko-Campos: Julia Kristeva diz que é pela narrativa, e não pela língua em si, que se realiza o pensamento político. Nosso trabalho junto a grupos de usuários e associações de usuários tem nos chamado muito a atenção para o fato de que ainda falta muito caminho a ser percorrido para termos o exercício pleno da cidadania que prevê a Constituição. Nossa população está acostumada a ser paciente, tolerante e mansa em relação à postergação do usufruto de direitos. Penso que estudos narrativos e participativos contribuem – de alguma maneira – para o empoderamento desses grupos desde que eles se munam de informações e aprimorem seus argumentos. Dessa forma, suas narrativas vão ganhar notoriedade. Como diz Kristeva, as histórias narradas tornam-se elas mesmas ação pela sua restituição ao mundo da vida.

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