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Sandra Valongueiro: “A desumanização vem adoecendo e matando mulheres no Brasil”

Alyne Pimentel, morta em 2002 por complicações na gravidez

A médica especialista em Saúde Materna da Universidade Federal de Pernambuco, Sandra Valongueiro, chamou atenção durante entrevista da Abrasco para o Caso Alyne Pimentel, morta em 2002. Negra, 28 anos, moradora de Belfort Roxo, na Baixa Fluminense (RJ), casada, mãe de uma menina de 5 anos e grávida de 27 semanas, procurou uma casa de saúde particular com vômitos e fortes dores abdominais. Foram-lhe prescritos remédios para náuseas, vitamina B12 e infecção vaginal. Dois dias depois piorou, voltou à casa de saúde, fez ultra-sonografia. O feto estava morto. Os médicos induziram o parto. Mas só fizeram a cirurgia para retirar a placenta 14 horas depois. Alyne teve hemorragia, vomitou sangue, a pressão arterial caiu. Decidiram transferi-la para um hospital público. O único que a aceitou foi o Hospital Geral de Nova Iguaçu. Alyne esperou oito horas por ambulância. Como a casa de saúde não encaminhou junto qualquer documento que indicasse o seu estado clínico, ficou horas no hall da emergência, pois não havia leito disponível. Aí, entrou em coma e faleceu. Entre o mal-estar inicial e o óbito se passaram cinco dias. O caso foi o primeiro denunciado ao Comitê para a Eliminação de Discriminação contra a Mulher – CEDAW, da Organização das Nações Unidas. Confira entrevista completa:

Abrasco – A desumanização do atendimento e o desrespeito matam mulheres hoje no Brasil?

Sandra Valongueiro – A desumanização, no sentido de considerar o outro como menos humano, e o desrespeito vem adoecendo e matando mulheres no Brasil, resultado das múltiplas faces da violência a que estão submetidas. Estruturadas nas desigualdades de gênero, classe e raça/cor, a vida de mulheres e meninas experimentam cotidianamente violações do direito à vida, à infância, à saúde e a uma maternidade segura . Nessa perspectiva, pode-se pontuar a persistente naturalização da violência doméstica/e sexista e a violência institucional/e obstétrica, expressas na precariedade no acesso a informações sobre sexualidade e contracepção, na dificuldade de acesso, acolhimento e escuta nos serviços de saúde, no excesso de intervenções sobre seus corpos, medicalização do parto e nascimento e criminalização do aborto. Além do desconhecendo que mulheres são diferentes, tem trajetórias de vida, necessidades e desejos distintos, sejam essas periféricas, negras, indígenas ou trans.

Abrasco – A falta de protagonismo da mulher na condução do processo do seu parto é uma causa da mortalidade materna?

Sandra Valongueiro – O parto e o nascimento deixaram de ser uma vivência para se tornar um evento, um procedimento hospitalar com hora para iniciar e acabar. Esta mudança retirou das mulheres seu protagonismo, fazendo com que as mesmas se sintam “doentes” em potencial a serem tratadas. Protagonismo este que deveria ser exercido desde o momento de decidir ter ou não ter filhos, o que, com certeza, reduziria a alta proporção de gravidezes não pretendidas Brasil e todas as consequências para a saúde e vidas das mulheres. Falando do lugar do Comitê Estadual de Mortalidade Materna de Pernambuco (CEMM-PE), é evidente como a fragmentação da rede de atenção obstétrica é responsável pela grande maioria das mortes maternas evitáveis. Um pré-natal é mais normativo que resolutivo, sem garantia vínculo com as maternidades e sem compromisso com o fortalecimento das mulheres como sujeitas de sua gravidez e parto.

Após distintas barreias do acesso à assistência ao parto e aborto, mulheres se deparam com superlotação de leitos e, em geral, à “cascata de intervenções”, sem espaço de fala e muitas delas ainda sem acompanhantes, embora seja Lei desde 2005. Situações nas quais são “empurradas” a se comportarem como pacientes e não como mulheres capazes de protagonizar seu parto, sendo às vezes a serem responsabilizadas pelos desfechos negativos. Relato de uma profissional entrevistada durante uma investigação de óbito materno: “a paciente não ajudou durante o trabalho de parto, acabou indo para cesárea e complicou com hemorragia. Fizemos o possível”… Embora, nacionalmente, esforços venham sendo feitos , visita às maternidades públicas e conveniadas da Região Metropolitana do Recife realizadas pelo CEMM-PE em maio deste ano, mostraram muitas mulheres recolhidas ao seu papel de paciente e com viés de gratidão. De uma jovem de 21 anos, segundo filho: “parir na primeira maternidade que a gente procura é uma benção, tenho nada reclamar, não!” O não protagonismo das mulheres bloqueia, inclusive, as possibilidades de, em casos de maus tratos e violência institucional elas denunciem à Ouvidoria e ou Ministério Público local. Neste contexto, o não protagonismo da mulher durante a gravidez, parto e pós-parto, poderia ser caracterizado como um determinante distal da mortalidade materna (autonomia social e/ou empoderamento).

Abrasco – A morte materna no Brasil, porém, atinge a todas as mulheres, independente de raça e classe social?

Sandra Valongueiro – Os resultados de uma gravidez e parto estão relacionados com as condições de vida das mulheres e com a qualidade da assistência obstétrica e juntas influenciam as chances de sobrevivência. No Brasil, estimativas mais recentes mostram estabilidade da Razão de Mortalidade Materna (RMM) em torno de 62 /100.000 nascidos vivos para 2015. São mortes evitáveis que tem classe, raça/cor e idade. Estudos revelam maior risco entre as mulheres negras, mulheres residentes em regiões menos desenvolvidas, como o Norte e o Nordeste do país (RMM no Maranhão acima de 100/100.000 nascidos vivos e Santa Catarina, 40/100.000 nascidos) e entre as mulheres acima de 35 anos , estas por estarem expostas a uma maior paridade e comorbidades. . Em Pernambuco, 77% dos óbitos maternos em 2016 foram entre mulheres negras. Ou seja, a morte materna evitável atinge de forma desigual as mulheres vulneráveis, expostas ao modelo de atenção médico-centrado, permeado por racismo institucional, e que está engatinhando em assumir as evidências científicas como estratégia de acolhimento e cuidado.

Abrasco – Atualmente no Brasil, qual a sua avaliação sobre os profissionais que preenchem as declarações dos óbitos maternos? Existe o registro correto da nomenclatura de morte materna?

Sandra Valongueiro – A informação sobre morte materna depende da qualidade dos sistemas de informação (sub-registro, quando o óbito não é notificado ao SIM) e do compromisso dos médicos com o preenchimento da Declaração do Óbito (DO) (subinformação, quando o óbito é declarado com uma causa não materna). A declaração da da causa materna depende da distância entre a ocorrência do óbito e o parto ou aborto, seja esta distância no tempo ou no espaço. Por exemplo, uma mulher morre após 15 dias de internamento numa UTI, por complicação um aborto infectado, a causa básica pode erroneamente ser declarada como Pneumonia, sem qualquer referência ao aborto. Ou, uma mulher é internada em um hospital local com pré-eclampsia grave é transferida para um hospital de referência, passa por uma cesárea, faz diálise e morre logo após. A causa do óbito pode erroneamente ser declarada com Insuficiência Renal Aguda, sem menção ao parto ou doença que iniciou a sequência de complicações que levou àquele óbito. Neste sentido, a qualificação da dos dados sobre morte materna é fundamental para monitorar seus níveis e propor medidas de intervenção.

No Brasil, a qualificação dessas informações, na maioria dos estados, foi por muito tempo de responsabilidade exclusiva dos Comitês de Mortalidade Materna, fossem esses, estaduais e/ou municipais. A necessidade de indicadores padronizados para monitoramento da mortalidade materna e infantil em resposta aos Objetivos do Milênio (1990-2015) impulsionou o Ministério da Saúde (MS) a qualificar informações sobre óbitos de mulheres em idade fértil e maternos, óbitos infantis e fetais e nascidos vivos (este último, o denominador desses indicadores). Por meio da Portaria MS 1.119 de 2008, estruturou-se um sistema de Vigilância de Óbitos de Mulheres em Idade Fértil e Maternos, definindo instrumentos, fluxos e prazos para que óbitos maternos sejam investigados, discutidos e incluídos no Sistema de Informação sobre Mortalidade (SIM) que tem melhorado a qualidade dessa informação. Outra estratégia que tem permitido monitoramento das informações sobre mortalidade materna em tempo real é o Painel de Monitoramento da Mortalidade Materna.

Segundo avaliações recentes do MS, houve incremento de 28% entre a notificação do óbito ao SIM e a classificação obtida após a investigação, porém abaixo de um padrão estabelecido de 34%. O monitoramento dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) exige que essa qualificação seja mantida, considerando a diversidade regional e com foco nos estados/regiões com mais dificuldades. No entanto, é difícil avaliar quanto desse incremento está relacionado à melhoria do preenchimento correto da Declaração de Óbito pelos médicos. Esra é sem dúvida, uma boa pergunta de pesquisa… Por outro lado, muitas das atividades de investigação e discussão dos óbitos maternos que eram centradas nos Comitês de Mortalidade Materna ao passaram a ser realizadas pelos Grupos Técnicos da Vigilância do Óbito, meio que desarticularam alguns desses Comitês, colocando o desafio de redesenhar suas funções, que em minha opinião, deve ser de controle social.

Abrasco – Por ser uma morte evitável e totalmente relacionada com a condição de ser mulher, a morte em decorrência da gestação, parto ou pós-parto é, responsabilidade do Estado?

Sandra Valongueiro – A morte materna representa uma violação dos direitos reprodutivos e humanos das mulheres. A condição de não doença da gravidez, a possibilidade de acesso e manejo adequado de tecnologia em saúde, a possibilidade de controle da reprodução e interrupção da gravidez indesejada (embora não seja no Brasil) e a existência de conhecimento e evidências científicas disponíveis sobre atenção obstétrica, dentre outras, consolidam a condição de evitabilidade dessas mortes.

No Brasil, em 2016, 98,3% dos partos e nascimentos foram hospitalares, supostamente sob a responsabilidade dos serviços e profissionais de saúde, destes, a maioria SUS. Ou seja, as mulheres e suas famílias ao buscarem os serviços de saúde como formas mais seguros de parir, confiam no Estado como instância de garantia de direitos à saúde, à vida e à maternidade segura.

Por isso, este Estado deve ser responsabilizado pela ocorrência de morbidades graves e mortes maternas evitáveis. A cobrança dessa responsabilidade, no entanto, vem sendo feita timidamente por diversas razões, dentre essas, a não compreensão da condição de evitabilidade da morte materna, o já citado viés de gratidão, o medo de retaliação, principalmente em cidades pequenas, desconhecimento de como proceder e mesmo por descrédito nas instituições de direitos humanos no Brasil.

Existem diversos tratados, convenções e protocolos internacionais assinados pelo Brasil que podem ser acionados para que os governos sejam chamados a ofertarem acesso não discriminatório à saúde sexual e reprodutiva, como a Convenção das Nações Unidas sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (CEDAW).

Mesmo nesse contexto, em novembro de 2007, Centro de Organizações Não-Governamentais pelos Direitos Reprodutivos e a Advocacia Cidadã encaminham uma denúncia de morte materna evitável ao CEDAW. Alyne Pimentel tinha 28 anos, era negra e residente no Rio de Janeiro. Em 2011, a CEDAW identificou falhas no sistema público de saúde que violaram os direitos humanos de Alyne Pimentel à vida, à saúde e ao acesso igualitário a serviços de saúde materna (Alyne v. Brazil) . A morte de Alyne foi emblemática do modelo de atenção ao parto no sistema de saúde brasileiro, que por sua vez refletem situações conflitantes de discriminação baseada em gênero e raça/cor nessa sociedade. As recomendações ao Governo brasileiro foram em nível individual (reparações adequadas à mãe de Alyne Pimentel) e gerais (“garantir o direito das mulheres à maternidade segura e acesso econômico a cuidados obstétricos de emergência, dentre outras”). Este caso demonstra as dificuldades e também a importância de usar o referencial de direitos humanos em saúde para enfrentar o descaso e violência institucional que adoece e mata, responsabilizando o Estado com o cuidado e fortalecimento das mulheres, tornando-as protagonistas e não pacientes.

Nós, que compomos o controle social do CEMM-PE, firmamos em 2003 um protocolo de atuação conjunta com Ministério Público de Pernambuco MP-PE, que embora não consiga responder às nossas necessidades, se mantém como parceiro da vigilância da morbimortalidade materna no Estado. Garantir a saúde sexual e reprodutiva e reduzir morbimortalidade é uma responsabilidade dos Governos e deve ser monitorada pela sociedade civil.

+ Leia o Especial Abrasco sobre o aumento da mortalidade infantil e mortalidade materna no Brasil

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