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Saúde dos Povos Indígenas: um novo capítulo para o Brasil?

Hara Flaeschen

Cacique Heroina Rewanhiré: indígenas Xavante passaram fome durante a pandemia de Covid-19 | Foto: José Medeiros/Amazônia Real

“Território: nosso corpo, nosso espírito” é uma fala atribuída a mulheres indígenas, e explica a relação dos povos originários com os lugares onde vivem. É, também, um manifesto sobre saúde. Aos povos indígenas, o Estado deve garantir acesso ao cuidado – com medicamentos, equipes interdisciplinares, Unidades Básicas de Saúde Indígena bem estruturadas – sem perder a perspectiva de que saúde também é  demarcação dos territórios, respeito aos saberes ancestrais e o uso de medicinas da floresta, e ocupar os espaços de tomada de decisão. 

Neste sentido, 2023 é um ano de mudanças. Entrevistamos pesquisadores do GT Saúde Indígena da Abrasco, para entender a atual conjuntura da Saúde dos Povos Indígenas do Brasil. 

Conquista histórica: um indígena à frente da SESAI 

Em 29 de novembro de 1986, a plenária final da Conferência Nacional de Proteção à Saúde do Índio, realizada no auditório do Ministério da Saúde, em Brasília, aprovou um documento em defesa da criação de um órgão específico responsável pela saúde indígena no país, vinculado ao SUS –  que ainda estava em construção. Reconhecia-se “a importância da elaboração de políticas para os indígenas com a sua participação”. 

Para Eliana Diehl, coordenadora do GT da Abrasco e professora da UFSC, a nomeação de Ricardo Tapeba para a SESAI , em janeiro de 2023,  o primeiro indígena a coordenar a Secretaria, representa a conquista desse  direito à participação, reivindicado há 37 anos.

 “Naquela primeira Conferência, defendeu-se o respeito à organização social e política, aos costumes e às tradições dos diversos povos indígenas, sendo que esses últimos foram incluídos na Constituição Federal de 1988. O SUS, também contemplado na Constituição, não instituiu o órgão específico em sua estrutura, o que veio a acontecer somente no final de 2010, com a criação da SESAI”, explicou.

Antes da SESAI, em 1999, foi aprovado o Subsistema de Atenção à Saúde Indígena (SASI), articulado ao SUS. Na sua primeira década de existência, a coordenação foi da Fundação Nacional de Saúde (Funasa), um órgão do Ministério da Saúde – apenas com não indígenas na sua coordenação. “Da mesma forma, até janeiro de 2023, a SESAI foi coordenada por não indígenas. Agora, espera-se que a maior participação na gestão e execução das ações e serviços do Subsistema reflitam o protagonismo indígena na saúde, almejado há décadas”, diz Diehl. 

Segundo Ana Lúcia Pontes, pesquisadora da Fiocruz e integrante do GT, é  “Um novo capítulo da história do Brasil e da relação do Estado com os povos indígenas”. Ela reforça que a mudança se dá em toda a estrutura da SESAI, já que Tapeba está convocando pessoas para compor os quadros técnicos da secretaria, e há um processo coletivo para decidir as pessoas à frente dos 34 Distritos Especiais de Saúde Indígena (DSEIs). 

“É uma conquista árdua pelo protagonismo e a capacidade de assumir os espaços de tomada de decisão com relação às polítcas públicas que lhe são direcionadas e lhe dizem respeito. O Estado tem a obrigação de consultar os povos indígenas, e que as decisões sejam por eles tomadas, inclusive no âmbito do governo e das políticas públicas”, conclui.  

Ricardo Tapeba, primeiro indígena à frente da SESAI |Foto : Fernando Frazão / Agência Brasil

MIP deve garantir mais autonomia e recursos para políticas de saúde indígena 

Para além da estrutura do Ministério da Saúde, também há uma importante movimentação no âmbito do Ministério dos Povos Indígenas (MIP), criado em janeiro de 2023 e coordenado pela ministra Sônia Guajajara. Felipe Tavares, coordenador do GT e professor do Instituto de Saúde Coletiva da UFF, destaca que a nomeação de uma ministra indígena é um passo importante em direção à inclusão dos povos indígenas no governo federal.

Ele aponta que um ministério dedicado às demandas indígenas visa mais autonomia e recursos para desenvolver políticas, programas e ações de saúde, atendendo às necessidades específicas desse segmento, garantindo o acesso à saúde de qualidade e respeitando as especificidades socioculturais e territoriais dos povos indígenas.

“É importante ressaltar que a criação do MIP não é uma solução por si só. É fundamental que, capitaneada pelo MIP, haja uma abordagem interdisciplinar, interinstitucional e intersetorial que envolva não só o governo, mas também a sociedade civil, as organizações indígenas e outros setores implicados na defesa dos direitos dos povos indígenas. Qualquer iniciativa deve considerar as especificidades socioculturais e linguísticas dos diferentes povos do país”, sinaliza. 

Existem várias medidas que são urgentes e fundamentais para garantir a saúde dos povos indígenas no Brasil, já em discussão na SESAI. Tavares aponta que é preciso promover vacinação contra todas as doenças imunopreveníveis; e aumentar a fiscalização para o combate ao garimpo e à invasão de terras indígenas. Também a garantia de segurança alimentar, com incentivo à produção de alimentos nas comunidades, e também distribuioção de alimentos de acordo com as necessidades de cada comunidade. 

“É imprescindível o fortalecimento do SASI/SUS, com a qualificação da gestão da SESAI e dos DSEIs, e a contratação e educação permanente de profissionais, incluindo os Agentes Indígenas de Saúde e de Saneamento. É preciso atender as necessidades de indígenas em territórios não demarcados e em contextos urbanos, assim como a melhoria da infraestrutura das unidades de saúde, o fortalecimento das instâncias de controle e participação social – com orçamento para suas atividades e para a qualificação de conselheiros”. 

Sônia Guajajara, Ministra dos Povos Indígenas | Foto: Antônio Cruz/ Agência Brasil

Tragédia sanitária com Yanomamis era evitável 

Ana Lúcia Pontes é a coordenadora do Centro de Operações de Emergências em Saúde Pública (COE), estruturado desde janeiro em território Yanomami, a fim de conter o desastre sanitário causado por anos de negligência do Estado brasileiro – acentuada no governo Bolsonaro – e um reflexo direto do desmatamento e garimpo ilegal na Amazônia. Desde 2021 a Abrasco denuncia a disparada na desnutrição e aumento de doenças – como a malária. 

Ela descreve um cenário desolador, sobretudo porque a tragédia sanitária era evitável, já que há mecanismos para garantir a segurança daquele povo. O primeiro DSEI do país foi o Yanomami, criado em 1991. A compreensão de que era possível promover saúde indígena de forma específica para cada território – respeitando os saberes ancestrais e as próprias práticas de saúde dos povos indígenas – inspirou a criação dos outros 33 DSEIs, espalhados pelo país.

“A história se repete tragicamente, nos anos 80 e 90 a gente já tinha visto uma situação como essa. Mas agora é um território demarcado, tem o Distrito Sanitário, a gente imaginava que o Estado cumpriria sua obrigação de proteger essa população da malária, da fome. Tem a questão da invasão territorial, mas houve um desmonte da estrutura pública,  do próprio DSEI”. 

A pesquisadora conta que a partir dos indicadores de saúde e das denúncias das lideranças, já se sabia que a situação era grave, e que não é um quadro fácil de reverter a curto prazo. Ela descreve que tudo está sucateado: desde as pistas de pouso no meio da floresta – o que dificulta a levar os profissionais e insumos para o território -, até as Unidades Básicas de Saúde Indígena, que não têm água potável , energia, internet,  e medicamentos básicos. Os alojamentos não são adequados, e há escassez de profissionais de saúde, assim como a falta de planejamento da rotina dos serviços de saúde. 

Além disso, ainda há pontos inacessíveis, por questões logísticas – a dificuldade nas pistas de acesso – e insegurança, já que ainda não houve desintrusão completa dos territórios. 

“Ainda não é possível garantir a assistência completa e adequada para o povo Yanomami, mas com esse trabalho contínuo e persistente, esse Distrito pode voltar a garantir serviços de saúde para população. A ideia é reverter o indicador que mais nos preocupa, que é a mortalidade infantil de menores de um ano por agravos preveníveis, como desnutrição, malária, infecções respiratórias agudas e diarreia”, diz Ana Lúcia. 

Além da situação dos Yanomami, há várias crises sanitárias e humanitárias afetando povos indígenas em diferentes regiões do Brasil. Os Munduruku no Amazonas e os Kayapó, no Pará, são historicamente ameaçados pelo ataque de garimpeiros e madeireiros, por exemplo.Há ainda os territórios tomados pelo agronegócio, como é o caso dos Guarani-Kaiowá, no Mato Grosso do Sul, que vivem precarizados, em aldeias pequenas e acampamentos, sem acesso à água, saneamento básico e atenção à saúde. 

Felipe Tavares reforça que a pandemia de Covid-19 foi um agravante nessas desigualdades e iniquidades que afetam os povos indígenas, e hoje atinge “muitas comunidades em todo o país, especialmente aquelas que vivem em áreas mais remotas e com acesso limitado à assistência adequada”. 

Abrasco é parceira da luta dos povos indígenas 

O GT Saúde Indígena da Abrasco foi criado nos anos 2000, como reflexo da luta do Movimento da Reforma Sanitária Brasileira para a crção de uma política de saúde para os povos indígenas. Desde a sua criação, subsidia cientificamente movimentos indígenas e indigenistas, produzindo conhecimento para aprimorar o subsistema de Saúde Indígena, mapear situações de saúde e de iniquidades em saúde, e contribuir para o direcionamento da política de Ciência e Tecnologia nesse contexto. O grupo também tem um histórico de auxiliar diretamente em trâmites políticos e judiciários, como a ADPF . 

“O GT é uma iniciativa muito importante na luta pelos direitos dos povos indígenas no Brasil, especialmente no que se refere ao acesso à saúde de qualidade e à defesa da saúde como um direito humano fundamental. Tem um papel crucial em ajudar a sensibilizar a sociedade e as autoridades para a necessidade de promover saúde indígena, e em desenvolver estratégias e políticas que garantam o acesso à saúde de qualidade para essa população”, afirma Felipe Tavares.

Ana Lúcia Pontes  destaca que a Abrasco é vista como uma parceira na luta dos povos indígenas, e que o GT está se reconfigurando para permitir novos mecanismos de produção de conhecimento e o posicionamento da Abrasco nesse cenário: “É necessária cada vez mais a participação de pesquisadores indígenas, com outros mecanismos de pesquisa, outras epistemologias e metodologias – além de outros paradigmas de luta na saúde que, neste caso, envolve a luta pela terra”. 

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