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Saúde e democracia – por Hêider Pinto

Vilma Reis

O médico sanitarista Hêider Aurélio Pinto comenta a crise política no Brasil e retoma o debate sobre a chamada ‘Agenda Brasil’ – proposta pelo presidente do Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL) em agosto de 2015, como um armistício e uma saída para a crise, a Agenda Brasil apregoa modernizar o País, mas pode ser um retrocesso de direitos como regular terceirizações e cobrar pelo SUS. Confira o artigo na íntegra:

Há 40 anos profissionais, estudantes, professores, estudiosos, gestores e movimentos populares da área de saúde iniciaram a construção de um movimento que tinha na palavra de ordem “saúde e democracia” a síntese de uma luta que travou no combate à ditadura, na redemocratização do país, no estabelecimento da saúde como “direito de todos e dever do Estado” e na criação do SUS na Constituição de 1988. Mais do que nunca essa palavra de ordem sintetiza a luta atual dos movimentos de saúde para resistir ao golpe que está em curso no país, tanto em sua dimensão política quanto socioeconômica.

No último dia 17 de abril a Câmara de Deputados mais conservadora do período recente, marcada pela corrupção e protagonizando uma sessão que mancha a história de nosso país, autorizou o início de um processo de impeachment ilegal de uma presidenta eleita sobre a qual não pesa nenhum crime de responsabilidade. Mas o processo precisa ainda de maioria simples para ser aceito no Senado e de maioria de dois terços para resultar na cassação do mandato da presidenta. Além disso, o Supremo Tribunal Federal, provocado, poderá validar ou invalidar o processo.

Aquilo que dá causa ao golpe não é o discurso demagógico do combate à corrupção. Se o fosse não seria conduzido por pessoas acusadas de corrupção e não teria como parte dos acordos a impunidade e bloqueio de investigações em curso contra sócios do golpe. O que lhe justifica é a política econômica e social que o consórcio de golpistas – parlamentares e partidos, mas fundamentalmente diversos atores e setores da classe economicamente dominante, nacional e internacional, com destaca participação dos grandes monopólios de comunicação – pretende adotar num momento de crise internacional no qual o Brasil passa por uma importante recessão.

O que se propõe é a clássica cartilha do neoliberalismo: desregulamentação de mercados (de produtos, serviços e capitais), privatizações de toda natureza, redução dos custos do trabalho (contrarreforma trabalhista, arrocho salarial e desemprego), redução dos gastos sociais via redução da ação social do Estado (em especial na seguridade social – saúde, assistência e previdência) e, de quebra, transferência ao mercado dessas áreas nas quais o Estado deixaria de atuar.

Essa cartilha nesse contexto é uma gravíssima ameaça ao SUS. No documento “Ponte para o Futuro” se propõe a desvinculação definitiva de receitas, o que bloquearia o avanço da Emenda Constitucional nº1 de 2015, fruto da luta do movimento Saúde+10; a redução/congelamento do já absolutamente insuficiente recurso público da saúde; e a transferência de ações e serviços de saúde do Estado à iniciativa privada, chamada eufemisticamente de “parceria”.

Estaria nos planos – políticos, econômicos e sociais – do consórcio golpista a produção de uma “tempestade perfeita” para desconstruir o SUS que temos hoje. A satisfação com, a legitimidade e defesa do sistema pela população tenderia a minguar com um sistema ainda mais subfinanciado, com redução de serviços e focalização das ações, aumento da demanda reprimida ante uma oferta maior de pessoas (pela necessidade de saúde agravada pela crise e pelos “expulsos” da cobertura dos planos de saúde empresariais), com aumento do tempo de espera, da filas e do déficit de atendimento.
É a “tempestade” que viabilizaria as proposições peemedebistas na Câmara e no Senado de obrigar que grandes e pequenas empresas paguem Plano de Saúde a seus funcionários, como o Projeto de Emenda Constitucional 451/2014 de autoria de Eduardo Cunha, e de cobrar do cidadão por procedimentos realizados no SUS como está na proposta “Agenda Brasil”.

É por tudo isso que a palavra de ordem “Saúde e Democracia” gestada há 40 anos volta a ter um sentido amplo, radical e necessário. Todos aqueles que defendem a saúde como direito e o avanço do SUS precisam resistir ao golpe, em sua dimensão política e social. Defender a democracia é defender a saúde. Daí que os movimentos de saúde precisam se somar à resistência democrática e popular ao golpe.

Mas, é necessário também que os movimentos de saúde ampliem sua capacidade de mobilização e organização. Que mais que se articulem, se enredem e reinventem num exercício de aprofundamento democrático e participativo. Que afirmem, defendam e disputem valores generosos, democráticos, humanistas e socialistas no imaginário social e que esses valores possam ser vistos e sentidos nas práticas cotidianas e luta desses movimentos.

Isso vale para os movimentos e organizações que tiveram importante papel na Reforma Sanitária dos anos 70/80 como a Centro Brasileiro de Estudos de Saúde, a Associação Brasileira de Saúde Coletiva, o Movimento Popular de Saúde, sindicatos e organizações de trabalhadores de saúde, as sessões de saúde dos sindicatos, movimentos, centrais sindicais e partidos progressistas.

Vale para organizações suprapartidárias como os conselhos de secretários de saúde, municipais e estaduais e, sobremaneira, para os conselhos de saúde, no âmbito local, municipal, estadual e nacional, que, como instância de controle social e participação popular conquistada na legislação do SUS, tem importante papel de resistir ao desmonte do sistema, além de já ter mostrado mais de uma vez que cresce em tempos de crise.

E vale também para novas organizações e movimentos que têm surgido ou ganhado novas características e inovado nos modos de participação e ação como: de educação popular, de saúde mental, de saúde das mulheres, população LGBTT, de rua, negra, indígena e do campo, movimento Rede Unida, os médicos populares, os coletivos de saúde dos movimentos estudantil, rural e urbano e os diversos modos de enredamento de grupos que têm se organizado e reforçado a luta em espaços virtuais colaborativos.

Ainda que seja necessária a resistência institucional ao golpe, porque muita luta haverá para impedir que seja consumado, a ação que deverá predominar será a social nos movimentos, nos serviços, no local de trabalho, nas ruas, no asfalto, no barro ou na mata, na disputa de corações e mentes. É ação de construção de resistência junto ao povo na qual se exige a concretização e ampliação de direitos e se luta fortemente contra qualquer subtração de algo já conquistado. É por isso que defender a saúde é também defender a democracia, radicalizar a democracia, lutar por uma democracia de alta intensidade, disputar o conteúdo da democracia, ocupar a democracia.

 

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