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 NOTÍCIAS 

Saúde e Desenvolvimento

05 de agosto de 2013Por Luis Eugenio Portela*

 

A saúde humana é uma condição referida ao estado vital, necessariamente multidimensional e contextualizada, que abrange uma ampla gama de fenômenos biológicos, psicológicos e sociais. Como condição complexa, comporta interações mútuas entre seus vários aspectos, que produzem emergências (propriedades novas), paradoxos e mistérios. Não se trata de algo diretamente observável, mas sim de uma condição reconhecida por seus efeitos: a saúde se expressa na autonomia e na capacidade das pessoas de decidirem como levar a vida (Almeida-Filho, 2001).


Desse modo, a doença, ainda que também relacionada ao estado vital, não representa o oposto da saúde. São disfunções biológicas ou psicológicas, cuja ausência não só não caracteriza o estado de saúde, como pode ser danosa: a estafa ocupacional que obriga o trabalhador a descansar, por exemplo, é uma doença que protege a saúde. Em consequência, as intervenções voltadas para prevenir ou tratar as doenças específicas não são da mesma natureza daquelas destinadas a promover a saúde (Contandriopoulos, 1999). As primeiras buscam corrigir disfunções, as segundas, aumentar a liberdade de decisão das pessoas sobre suas próprias vidas.


Tal definição de saúde assenta-se em dois marcos históricos, embora  contemporâneos, fundamentais. O primeiro assenta-se na posição adotada pela Organização Mundial da Saúde (OMS), no momento de sua criação, com base na proposição do sanitarista de origem croata, Andrija Štampar (1888-1958), que coordena a 1ª Assembleia Mundial da Saúde (1948): a saúde é um estado de completo bem-estar físico, mental e social e não apenas a ausência de doença. Sem dúvida, trata-se de uma definição inovadora e potente. Pela primeira vez, a saúde é concebida de modo positivo e sintético, enfatizando a integralidade (bio-psíquica-social) do ser humano. Todavia, é uma definição parcial, que não leva em conta a capacidade funcional das pessoas em seu contexto, nem a existência de diferentes graus de saúde. Ademais, é uma definição irreal, no sentido de que ninguém, de fato, pode atingir esse estado. O segundo marco toma é a Carta de Ottawa (1986), documento fundador do movimento da Promoção da Saúde, que busca indicar os meios de se alcançar o completo bem-estar. Mantém a definição original da OMS, mas acrescenta que, para atingi-la, as pessoas devem saber identificar aspirações, satisfazer necessidades e lidar bem com o meio-ambiente. A saúde, então, não é o objeto do viver, mas sim um recurso para a vida, ou mais, o melhor recurso para o desenvolvimento pessoal, econômico e social.


  Se é possível chegar a um entendimento sobre o que é a saúde, falta compreender o que determina o estado de saúde de um indivíduo ou de uma população. Estudos empíricos evidenciam a influência de múltiplos aspectos da vida humana, de ordem biológica, psicológica e social, mas têm dificuldade de explicar como interagem para produzir mais ou menos saúde, vidas mais ou menos longas, vividas com mais ou menos limitações. Um importante esforço explicativo é apresentado pela Comissão Mundial sobre os Determinantes Sociais da Saúde (CMDSS). Sustentada numa exaustiva revisão bibliográfica, a CMDSS propõe um modelo teórico (Solar e Irwin, 2010) que adota como princípio orientador a busca da equidade em saúde, definida como a ausência de diferenças injustas e evitáveis nas situações de saúde de distintos grupos sociais. De maneira similar a outras teorias sobre a produção social da saúde, esse modelo atribui à posição social o papel central no processo de determinação do estado de saúde. As diferenças de posição socioeconômica determinam diferentes resultados de saúde, uma vez que a estratificação social produz exposições diferenciadas a condições danosas à saúde e provoca distintos níveis de vulnerabilidade, entre os grupos sociais. 


Mecanismos estruturais – sociais, econômicos e políticos – de distribuição de poder e riqueza na sociedade, relacionados à governança, às políticas macroeconômicas e sociais, à cultura e aos valores morais, determinam a estratificação social e a posição socioeconômica – em termos de renda, educação, ocupação, gênero, etnia/raça – dos diferentes sujeitos. Essa posição, por sua vez, configura os determinantes intermediários da saúde: as condições materiais de vida (moradia, alimentação, etc.), as condições psicossociais (níveis de estresse quotidiano, redes sociais de apoio, etc.) e os fatores comportamentais e biológicos (nutrição, atividade física, etc), incluindo o patrimônio genético. O acesso aos serviços de saúde é também um determinante intermediário, influindo tanto na exposição e na vulnerabilidade, quanto nas conseqüências das doenças para as vidas das pessoas. Por fim, a articulação entre os determinantes estruturais e intermediários da equidade em saúde e do bem-estar social constituem-se condições fundamentais e relevantes para a reprodução e coesão sociais.


Estabelecidos o conceito de saúde e a teoria da sua determinação social, ainda antes de passar às relações entre saúde e desenvolvimento, é preciso explicitar os conceitos de desenvolvimento a serem relacionados à saúde. Na forma como é predominantemente medido hoje, com base no Produto Interno Bruto (PIB), que é a mera soma dos valores econômicos gerados no mercado, o desenvolvimento se limita a significar crescimento econômico.  Contudo, já pertence ao senso comum a noção de que desenvolvimento é mais do que crescimento econômico. O aumento do PIB e das rendas pessoais ou o avanço tecnológico e industrial podem tornar uma população mais rica, em um sentido restrito, mas se não promovem melhores condições de vida para todos, não  contribuem para o desenvolvimento.

 

Assim, um processo de geração de riquezas que considera apenas as atividades mercantis e ignora a depreciação dos recursos naturais e humanos, mais do que insuficiente, pode ser prejudicial ao desenvolvimento. Entendido dessa forma, o desenvolvimento precisa ser sustentável, ou seja, deve deixar para as próximas gerações os recursos necessários e suficientes para que possam desfrutar de oportunidades ao menos equivalentes às da atual geração (Veiga, 2010).


Há desenvolvimento, portanto, quando se promove o bem-estar, em todas as suas dimensões: condições materiais de vida (renda, consumo e riqueza), saúde, educação, atividades pessoais (inclusive trabalho), atividade política e governança,, meio ambiente (condições presentes e futuras) e segurança de natureza física e econômica (Stiglitz, Sen e Fitoussi, 2009). Observe-se que essas dimensões, ao mesmo tempo em que definem o desenvolvimento, são condições para que ele ocorra. Essa concepção abrangente de desenvolvimento tem relações intrínsecas evidentes com a saúde. No entanto, Mesmo o crescimento econômico tem relações bem estabelecidas com a saúde, e influencia o padrão da saúde. Uma renda per capita mais elevada e um maior consumo de bens e serviços contribuem, em certa medida, para expandir a autonomia e a capacidade de decisão das pessoas sobre suas vidas. Nesse sentido, pode-se dizer que crescimento econômico leva a melhorias na saúde (Albuquerque e Cassiolato, 2002). A relação inversa – a saúde como causa do crescimento econômico – tampouco é difícil de ser compreendida. Um relatório do Banco Mundial, dedicado especificamente ao tema da saúde, relaciona cinco contribuições do bom estado de saúde da população para o crescimento econômico do país: (a) ganhos na produtividade do trabalho; (b) melhor utilização de recursos naturais; (c) benefícios de um melhor nível educacional das próximas gerações; (d) redução dos custos da assistência médica; e (e) redução da pobreza. Em conclusão, o relatório afirma que “a melhoria nas condições de saúde deve conduzir à melhoria do desempenho econômico no âmbito nacional” (World Bank,1993:23). Ainda na esfera da relação com o do crescimento econômico, deve-se registrar a delimitação da saúde como setor da economia (e não como estado vital). Nesse caso, interessa a contribuição da produção e circulação de bens e insumos para as ações de saúde e da prestação de serviços de saúde para a geração de riqueza. Dados da Organização Mundial da Saúde (WHO, 2012) indicam que os recursos mobilizados pelo setor da saúde correspondem a 9,7% do PIB mundial, um montante estimado de US$ 5,3 trilhões, em 2007. Portanto, independentemente de sua contribuição para a melhoria da situação de saúde das pessoas, a indústria e os serviços de saúde constituem um importante setor econômico.


No caso do desenvolvimento concebido, de modo abrangente, como condição de liberdade, no dizer de Sen (2010), as relações com a saúde são mais complexas. Em primeiro lugar, saúde e liberdade convergem para a mesma forma de expressão: a autonomia e a capacidade das pessoas de decidirem como conduzir suas vidas. Em segundo, ao visar à “expansão das ‘capabilities’ das pessoas de levar o tipo de vida que valorizam” (Sen, 2010:12), o desenvolvimento  promove, simultaneamente, a liberdade e a saúde. A efetivação desse tipo de desenvolvimento exige mais do que políticas macroeconômicas voltadas para o crescimento econômico, via industrialização e progresso técnico. Requer políticas públicas bem articuladas, que incidam em toda a cadeia de determinação social da saúde e fortaleçam as liberdades instrumentais e as liberdades substantivas.


Os determinantes intermediários da saúde ou as liberdades instrumentais são alvos de políticas específicas: (a) melhoria do acesso aos serviços de saúde de acordo com as necessidades de saúde; (b) estímulos a estilos de vida saudáveis – atividade física, dieta de alto valor nutricional, redução do tabagismo e do abuso de álcool e outras drogas; (c) fortalecimento das redes de apoio social e da segurança pública; (d) melhorias em habitação, transporte, saneamento e todas as condições materiais de vida. Os determinantes estruturais ou as liberdades substantivas, por sua vez, precisam ser alcançados por políticas econômicas, sociais e culturais que melhorem a educação, a ocupação e a renda de todos, combatam o preconceito e toda forma de discriminação negativa e adotem uma perspectiva baseada na sustentabilidade enquanto valor.

Fundamentalmente, devem implicam promover uma distribuição equitativa de poder e riqueza intra e intergeracional, através da intensificação dos mecanismos de participação social e da democracia, de modo a que todos ampliem sua autonomia e sua capacidade de levar o tipo de vida que valorizam.Vale destacar a dinâmica em espiral desse movimento: a melhor situação de saúde ou a maior liberdade oriundas destas disposições institucionais contribuem para o desenvolvimento que, por sua vez, contribui para subsequentes melhorias na saúde e expansões nos graus de liberdade, que produzem mais desenvolvimento e, assim, sucessivamente.  Enfim, as relações entre desenvolvimento e saúde são complexas, multidimensionais e mutuamente determinantes.  


E como se pode caracterizar essas relações e sua evolução no Brasil, hoje? Começando pela sua caracterização como setor econômico, a saúde no Brasil apresenta gastos da ordem de 9% do PIB e emprega cerca de 10% do total de trabalhadores assalariados, ou seja, é um setor de grande magnitude, que tende a crescer ainda mais, considerando-se o envelhecimento da população, o aumento da prevalência de doenças crônicas e a melhoria de renda das pessoas.  No que concerne às relações entre saúde, enquanto estado vital, e desenvolvimento, é preciso reconhecer que a estabilidade da democracia política, certo grau de desconcentração da renda e a ampliação do consumo de massas são conquistas recentes, das quais se podem esperar reflexos positivos na saúde. Contudo, as políticas centradas no crescimento não estão atentas à sustentabilidade, nem têm reduzido a concentração da propriedade e da riqueza. No caso da saúde, a mercantilização da atividade avança com a expansão dos seguros privados de saúde e a entrada em cena de poderosos investidores financeiros. Com isso, ainda que ajudem a elevar o PIB e a reduzir a miséria, as políticas econômicas e sociais tendem a não promover o desenvolvimento sustentável e a coesão social.


Finalmente, no que toca, especificamente, aos efeitos das condições de saúde sobre o desenvolvimento, a política macroeconômica nacional ignora a importância do investimento em saúde pública.  No Brasil, o gasto público em saúde não chega aos 4% do PIB, o que significa que 75% da população, que só usa o Sistema Único de Saúde, dispõem de apenas US$ 385.00 per capita/ano (WHO, 2012) para a atenção a todas as suas necessidades de saúde. É menos do que dispõem argentinos, cubanos, chilenos, colombianos e mexicanos, para ficar apenas na América Latina.

 

* Presidente da Abrasco, Luis Eugenio Portela apresentou este artigo durante a 65º Reunião Anual da SBPC, no Recife, no dia 24 de julho, no CCS-UFPE.

 

Referências

 

ALBUQUERQUE, E.; CASSIOLATO, J. As Especificidades do Sistema de Inovação do Setor Saúde. Revista de Economia Política, vol. 22, no 4 (88), outubro-dezembro, 2002.


ALMEIDA-FILHO, N. For a General Theory of Health: preliminary epistemological and anthropological notes. Cad. Saúde Pública [online]. vol.17, n.4., pp.753-799, 2001.


CONTANDRIOPOULOS, A.P. La santé entre les sciences de la vie et les sciences sociales. Ruptures, revue transdisciplinaire en santé, vol. 6, no 2, pp. 174-191, 1999.


SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. (Edição original: SEN, Amartya. Development as Freedom. Oxford: Oxford University Press, [1999])


SOLAR, O.; IRWIN, A. A conceptual framework for action on the social determinants of health. Social Determinants of Health Discussion Paper 2 (Policy and Practice). Geneva: World Health Organization, 2010.
STIGLITZ, J.; SEN, A.; FITOUSSI, J. P. Report by the Commission on the Measurement of Economic Performance and Social Progress. Paris: 2009. Disponível em: <http://www.stiglitz-sen-fitoussi.fr>. Acesso em : 28 de abril de 2013

 

VEIGA, J.E. Indicadores de sustentabilidade. Estudos Avançados, 24 (68), pp. 2010.

 

WHO-World Health Organization. World Health Statistics 2012. Disponível em
<http://www.who.int/gho/publications/world_health_statistics/2012/en/ Acesso em: 28 de abril de 2013.

 

WORLD BANK.  World Development Report 1993: Investing in Health. Oxford: Oxford University, 1993.

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