Em artigo publicado na segunda-feira, 18 de janeiro, Lígia Bahia, professora do Instituto de Estudos em Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IESC/UFRJ) e membro da Comissão de Política, Planejamento e Gestão em Saúde da Abrasco, discute o quadro de adversidades que vem marcando a saúde brasileira neste início de ano.
Para a pesquisadora, a baixa efetividade no combate ao Aedes aegypti e a gravidade da epidemia do Zika Vírus, causando mais de 3 mil casos de microcefalia, e os problemas vividos pelo sistema público no estado do Rio de Janeiro, podem ser atribuídos, mesmo que por razões diversas, a tênue e complexa relação entre os entes estatais e privados, marcada por interesses mercantis e pessoais, porém defendida e maquiada por arautos liberais num mantra cercado de moralismo que causa a baixa efetividade das ações públicas do Estado na saúde. “É como se a política pudesse ser colocada em quarentena. Claro que não pode, tanto que a saúde vem sendo invadida justamente por aquelas vertentes políticas, quase caricaturais”, argumenta Lígia, que defende que os problemas vividos pelo SUS não são motivados por erros do sistema, mas sim pela falta de compromisso dos setores políticos e econômicos em nossa sociedade pela sua não implementação. Leia abaixo na íntegra ou clique aqui e leia diretamente na publicação original.
Saúde em quarentena
Problemas não decorrem do SUS, mas de sua não implementação
Decisões movidas por diagnósticos equivocados e terapias tópicas, apenas gerenciais, mas anunciadas como mudanças drásticas, são causas indiretas de sofrimentos evitáveis. A saúde não está somente em crise, tornou-se um imenso problema crônico. Soluções improvisadas e choques retóricos podem acarretar novos problemas. As consequências da zika e o colapso de uma parte da rede de serviços no Rio de Janeiro, apesar das especificidades, não são fenômenos imprevistos ou eclosões acidentais. A opção por tratamentos enganosamente técnicos, rápidos, assépticos, não é proposital, resulta de uma forte atração por ações “politicamente imunes”, fundamentadas em falsa divisão de trabalho. Os puros, desinteressados, se encarregariam da busca de tecnologias sociais e gerenciais, enquanto que a mesquinharia e a corrupção ficariam sob a responsabilidade das instituições políticas.
Parcela considerável dos analistas de políticas públicas as concebe como processos movidos exclusivamente por interesses econômicos. Assim, as instituições políticas seriam dinamizadas por patológicos grupos contrários ao bem-estar público. A competição privada, em contraposição à saúde pública, evoca a livre escolha e o bom funcionamento do mercado e a falência da atuação governamental. Entretanto, essa divisão é artificial, as ações coletivas e individuais de saúde são fortemente regulamentadas.
Médicos não podem trabalhar sem diploma e registro em conselhos profissionais. E as acirradas polêmicas do século XIX sobre a obrigatoriedade da vacinação e proibição de produtos e substâncias nocivas versus o livre arbitrário ficaram para trás. Um mercado aberto e competitivo na saúde, que reúna vendedores e compradores de serviços e produtos para prevenção e cura, é uma miragem.
No dia a dia, os mais ardorosos defensores do equilíbrio entre demanda e oferta se desfazem da teoria do melhor custo-benefício sem a menor cerimônia. Aos primeiros sinais de adoecimento, ou mesmo para consultas rotineiras, correm em busca da excelência, de médicos formados e que estão vinculados a instituições e universidades públicas. Tudo muito bem regulamentado pelo Estado; e não deixam e pedir recibo para abater os gastos do Imposto de Renda.
No entanto, a reiteração da dicotomia público-privado desencadeia um crescente ceticismo na capacidade de intervenção governamental e estimula a preferência pelas alternativas baseadas na lógica do mercado, expressas em malsucedidas tentativas de salvaguardar a saúde de influências políticas. Como se a política pudesse ser colocada em quarentena. Claro que não pode, tanto que a saúde vem sendo invadida justamente por aquelas vertentes políticas, quase caricaturais.
As desastradas recomendações para as mulheres em idade fértil do atual ministro da Saúde ou a denúncia de contratação de um vereador (onipresente) pela empresa que faria uma gestão eficiente, sob a lógica do mercado de hospitais, refletem um preocupante afastamento da saúde pública das agendas de inovação, modernização e igualdade social. A comparação entre os currículos de ministros das área econômica e de saúde, quer se concorde ou não com suas ideias, esclarece qualquer dúvida a respeito da condição periférica do setor. A analogia vale para alguns estados e municípios. Quem se lembra do nome dos últimos secretários de Saúde do Rio de Janeiro, a não ser de quem foi acusado de desviar recursos? A caracterização da saúde como um negócio como outro qualquer, ironicamente, abre alas para o atacadão de interesses políticos particularistas. Gurus gerencialistas e seus sempre renovados clichês desenvolvem esforços e agitações respeitáveis.
Contudo, as promessas revolucionárias de poupar gastos desnecessários na saúde não deram certo em lugar nenhum. Acumulam-se evidências sobre a fragilidade de diversas fórmulas tecnocráticas de pagamento de médicos e hospitais e sobre propostas ingênuas de políticas saudáveis. Métodos e valores de remuneração de procedimentos embutem relações de poder. E todos morreremos, ainda que possivelmente mais velhos, menos doentes e mais autônomos, mas necessitando, ao longo da vida, de cuidados de saúde, sejam curativos ou paliativos.
O radicalismo dos jargões e o foco apenas em determinados aspectos administrativos impedem uma visão clara dos potenciais e entraves do conjunto do sistema de saúde. Graças à combinação da atuação política e mobilização de conhecimentos científicos e técnicos, o Brasil realizou uma reforma profunda na saúde. O SUS não é uma construção político-institucional trivial, e os problemas crônicos da saúde não decorrem de seus erros, e sim de sua não implementação.
A insistência na propaganda e nas ações centradas apenas nos focos domésticos de mosquitos, e não nos criadouros gerados pelas condições sanitárias; a “entrega de chaves” de hospitais públicos, como se fossem prédios comerciais, para outra esfera administrativa; a deterioração do programa nacional de imunizações, que precedeu e foi ampliado pelo SUS, são maus prenúncios. Instituições, redes sociais e entidades comprometidas com o desenvolvimento social não podem assistir de camarote ao isolamento político, à mediocridade e aos erros técnicos na saúde. A próxima reunião do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social deve encorajar a inclusão de pontos sobre saúde na pauta, espera-se coerência de fóruns cujos nomes conectam políticas sociais e econômicas. O controle e tratamento da dengue, chicungunha e zika, o monitoramento das iniciativas do gabinete de crise no Rio de Janeiro e a avaliação pormenorizada da irregularidade e falta de fornecimento de vacinas requerem análises à altura do que o Brasil pode realizar.
Saúde é um desafio democrático, refere-se à plausibilidade dos compromissos e compatibilidade dos recursos alocados para os efetivar. Nas eleições municipais de 2016, a política de saúde e o SUS podem ser resgatados desde que liberados do confinamento e dos modismos, achismos e pilhagens.