“Não temos tantas divergências assim.” Com essa frase, dirigida aos pesquisadores Lígia Bahia e Carlos Gadelha, Armínio Fraga gerou uma leve risada à plateia, o que poderia causar espanto aos mais desavisados. No entanto, o ex-presidente do Banco Central e um dos mais reconhecidos financistas do país há tempos tem se dedicado ao tema da saúde como instrumento para redução da desigualdade e sobre isso discorreu na conferência “Saúde e Medicina: uma visão econômica e social”, realizada em 4 de julho num dos auditórios do Hospital Clementino Fraga Filho (HUCFF/UFRJ).
Roberto Medronho, diretor da Faculdade de Medicina, e Marcos Freire, diretor do HUCFF/UFRJ, foram os anfitriões da atividade, que buscou costurar um olhar complexo sobre as relações entre saúde e economia com uma dinâmica diferente: os comentadores abriram a sessão levantando pontos antes da fala do convidado especial.
Pesquisador da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (ENSP/Fiocruz), líder do Grupo de Pesquisa Desenvolvimento, Complexo Econômico Industrial e Inovação em Saúde (GIS) e integrante do Comitê Assessor em Ciência e Tecnologia em Saúde da Abrasco, Carlos Gadelha destacou que só a interdisciplinaridade entre ramos de conhecimentos e a construção de consensos possíveis são capazes de permitir que a sociedade aufira benefícios coletivos do setor saúde, responsável pela parcela mais sofisticada da riqueza internacional, chegando a 1/3 de toda a pesquisa global.
Gadelha elencou três aspectos centrais para que a área consiga promover sua vocação para a maior parcela da sociedade. A centralidade da saúde como estratégia nacional foi o primeiro deles, relembrando que o setor é responsável por 7 milhões de empregos diretos e cerca de 21 milhões de empregos indiretos. O papel das instituições públicas no desenvolvimento da ciência, tecnologia e inovação em saúde foi destacado como condição tanto para a conquista de padrões de investimentos como desenvolvimento de inteligência estratégica. Por último, a compreensão de que os gargalos estão tanto no financiamento como na gestão.
“Nenhum sistema universal tem investimentos tão baixos como o do Brasil, e ainda sim temos uma desoneração tributária em cerca de R$ 40 bilhões só na saúde, uma parte da desoneração total de todas as áreas, que está em R$ 400 bilhões. Se migrássemos ao menos 5% da desoneração total, algo em torno de R$20 bilhões, resolveria grande parte do problema da Atenção Primária integral e teríamos uma transformação radical em nosso país” completou Gadelha.
Patamar realista: As dificuldades da relação entre saúde-economia foram o ponto de partida de Lígia Bahia, professora do Instituto de Estudos em Saúde Coletiva (IESC) e da Faculdade de Medicina da UFRJ, líder do Grupo de Pesquisa e Documentação em Empresariamento da Saúde (GPDES) e integrante da Comissão de Política, Planejamento e Gestão em Saúde da Abrasco, que frisou o ineditismo do encontro.
Características próprias do setor, como geração de despesa pré-paga e sua grande imprevisibilidade, são alguns dos elementos que, para a pesquisadora, fazem da saúde uma das políticas públicas com grande poder de transformação, mas secundarizada frente à educação básica.
No entanto, enquanto os demais países ricos mantêm os investimentos em saúde acima da média econômica e das taxas de mercado, o Brasil é um dos países com menor gasto público em saúde e com taxas de desembolso direto privado maior do que o público, mesmo quando comparados com países de média e baixa renda.
Tais mecanismos colaboram, segundo Lígia, para a manutenção da tendência de elevação dos gastos privados e compressão dos gastos públicos, e que se refletem tanto nas dificuldades de realização de diagnósticos como na informalidade e uso privilegiado da corporação médica sobre as regulações de leitos, entre outras problemáticas. “Essa visão, que é tratada como uma doce divergência americana, no Brasil ganha contornos de aguda relevância, uma divergência cruel e repugnante”.
Para a pesquisadora, a conformação do setor saúde no país leva à iniciativa privada a uma constante prática de reivindicar mais e mais subsídios. “Não adianta esconder o setor privado; e nosso problema não é a natureza da propriedade, contanto que o atendimento e o acesso sejam universais, estejam disponíveis para todos”. No entanto, a lógica financeira que impera impede que o debate seja feito às claras.
“Há um preconceito contra os sanitaristas, como se fôssemos feras prontas para atacar quando vemos o setor privado, que determinamos fazer assim ou assado. Não adianta impor um debate falso sobre padrões se não nos importarmos em continuar mantendo esses desertos sanitários. Ambos os lados precisam superar a miopia e ver os problemas do Brasil, e não pensar que somos os Estados Unidos ou a União Europeia”.
Estado Mínimo não é sinônimo de pequeno: Com conhecimento de quem viveu a “cozinha da política pública” e sentindo-se em casa (o médico e professor que batiza o hospital foi seu tio), Armínio Fraga situou o encontro como um espaço para expressar ideias frente à atual conjuntura, declarando já na abertura de sua participação que a grande falha da condução econômica brasileira é de governança, que não consegue desmontar interesses históricos como os benefícios às corporações empresariais que consomem 7% do PIB, e por Armínio identificado como “bolsa-empresário”.
Num mundo polarizado, a economia e a saúde, assim como a política, se encontram como formas de servir ao bem público e como instrumentos de interferência na vida das pessoas. No entanto, Fraga frisou que os processos de parceria entre as áreas e entre as esferas público e privado tem de ser às claras e precisam levar em consideração o vetor saúde como um investimento.
Para isso, o mercado não deveria temer os processos de regulação. “A mão invisível e competitiva não deveria negar as externalidades. Todo o complexo da saúde carece de regulação. São investimentos que se pagam numa economia complexa e em constante transformação”, colocando-se como um defensor dos impostos sobre açúcar, gordura trans e tabaco. “A transparência precisa ser uma das principais características de quaisquer produtos, inclusive planos de saúde” completou.
Fraga destacou que faz parte da natureza de um sistema público de saúde o aumento das suas dimensões e investimentos e reconheceu que o SUS nasceu em desvantagem dentro da distribuição do orçamento. “Se o sistema de saúde é público significa que o tamanho do estado vai aumentar e que a carga tributária vai aumentar, o que não é um mal em si se há gestão” disse ele, destacando a importância de os governos terem foco e objetividade com ações e campanhas preventivas e na Saúde da Família.
Identificando-se como um liberal não radical, Fraga reforçou que o setor saúde é uma fonte colossal de recursos, mas que sofre na área de assistência justamente pela assimétrica incidência da carga tributária no país. No entanto, frisou também que tais ajustes necessários não devem ser entendidos como uma luta de classes de soma zero.
“Um país que dê atenção à sua rede de proteção social vai ser mais capaz de se engajar na governança global e produzir mais e melhor” vaticinou o ex-presidente do Banco Central, que não deixou de elogiar e analisar feitos políticos da gestão que participou. “Irônico o fato de que a luta pelo vínculo constitucional [Emenda Constitucional 29/2000] que era para ser piso tenha virado teto. Não vou demonizar o atual financiamento, mas é evidente que está mal desenhado”.
Ao repassar os pontos abordados por Carlos Gadelha e Lígia Bahia, Armínio Fraga destacou a concordância na maioria dos pontos e colocou-se como um agente que quer agir em prol da causa da saúde, anunciando a proximidade do lançamento de um novo instituto que dirigirá, voltado para políticas públicas na área. “Queremos dar nossa colaboração e estreitar essas ações. Há muita agressividade no meio, mas acredito que haja espaço para a comunicação geradora de bons diagnósticos e boas políticas públicas. A saúde é uma grande área, ela vale muito, mas não sei se é cara. Eu sempre defendi o Estado Mínimo, mas não um Estado pequeno. É impossível gerar igualdade de oportunidades sem investimento em saúde e educação. Se há algo a ficar registrado dessa minha passagem nesse Hospital que é quase uma extensão familiar, o importante é marcar que o Armínio Fraga veio falar da saúde como enfrentamento das desigualdades” concluiu o empresário.