Os retrocessos na Política Nacional de Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas e a publicação da portaria 3.588, de 21 de dezembro de 2017, que altera a política com medidas como o aumento do valor da diária de internação e do número de leitos dos hospitais psiquiátricos e reintroduz hospitais-dia na rede, outras ações que revertem a orientação do modelo psicossocial, estiveram presentes em todas as falas da mesa-redonda “A quem interessa o retrocesso na política nacional de saúde mental e reforma psiquiátrica?”, realizada no realizada no domingo, 29 de julho, no último dia do 12º Congresso Brasileiro de Saúde Coletiva – Abrascão 2018.
A sessão reuniu importantes representações científicas e institucionais do campo, como Walter Ferreira de Oliveira, professor da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e presidente da Associação Brasileira de Saúde Mental (Abrasme); Monica Nunes de Torrenté, professora do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia (ISC/UFBA) e Rosana Onocko-Campos, professora da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas (FCM/Unicamp). A coordenação foi de Paulo Amarante, pesquisador do Laboratório de Atenção Psicossocial (LAPS/ENSP/Fiocruz) e vice-presidente da Abrasco.
Walter Oliveira destacou o descomprometimento do governo. “Pela primeira vez, ministros e coordenadores de saúde mental não têm relação tradicional com a área, com o sistema público de saúde e com a reforma psiquiátrica. Querem destruir o SUS; tudo o que conquistamos; todos os avanços que tivemos com a reforma psiquiátrica. Querem a volta dos manicômios, dos eletrochoques, talvez até das lobotomias”.
O presidente da Abrasme ressaltou a importância da resistência do movimento diante dos retrocessos. “Temos um movimento potente, que se opôs ao que está acontecendo, ocupando espaços políticos importantes, protestando. Estamos perdendo, mas temos que pensar o que vamos fazer”.
De acordo com o docente, é preciso repensar ações mais firmes dentro do campo da saúde mental. “A solução não é só medicalizar e internar, temos que discutir nas equipes, dentro dos serviços, nos Caps. Precisamos repensar as questões do suicídio, da medicalização, do aumento de cerca de 500% no consumo de ritalina nos últimos ano”, pontuou Oliveira.
Monica Nunes de Torrenté também refletiu sobre o movimento da reforma sanitária e os retrocessos. “A política de saúde mental é um avanço civilizatório e gera efeitos concretos sobre a vida das pessoas. O movimento é de grande efervescência, reflexo de lutas históricas, numa conjuntura política progressista, favorável. Com o golpe, houve mudança na correlação de forças políticas e setores conservadores ganharam expressão e poder”.
A pesquisadora e integrante do Grupo Temático Saúde Mental (GTSM/Abrasco) destacou os desafios de combater a mercantilização da saúde mental, a ‘indústria da loucura’, as práticas de violação dos direitos humanos, o lobby psiquiátrico e a valorização do leito. “Somos militantes históricos; temos força de resistência e enfrentamento, mesmo em condições adversas”. Citando Gilberto Gil, Monica acresentou: “andar com fé eu vou, que a fé não costuma faiá”.
Rosana Onocko-Campos salientou os avanços nas politicas de saúde mental no país durante os governos progressistas, com a expansão de serviços comunitários e a inversão do gasto, já que desde 2006 os serviços comunitários recebem mais dinheiro que os hospitais, e o fechamento de leitos. Porém, “o freio começou antes do golpe, a expansão de serviços comunitários está estanque desde 2011 e o processo de fechamento de leitos está inconcluso”, explicou.
A professora da FCM/Unicamp destacou a importância de entender a produção científica também como forma de luta política. Para sustentar seu argumento, mostrou artigos, alguns publicados em inglês, que fazem um grande balanço do sistema, mostrando a iniquidade na distribuição dos serviços nas regiões, com lacunas de assistência no Norte e Nordeste brasileiro. Outro ponto destacado foi o aumento dos gastos, mesmo com a diminuição de leitos, ressaltando que não é possível realizar pesquisas sem dados. “Depois de 2015 não temos informações disponibilizadas pelo Ministério da Saúde. Por quê?”.
A organização da atenção por meio de equipes multiprofissionais, a sensibilidade cultural e regional e o caráter inovador dos Caps III foram alguns pontos fortes ressaltados no modelo brasileiro pela professora. Como pontos fracos, ela considerou a implantação de serviços e estratégias sem monitoramento adequado, a medicalização das práticas, a incoerência entre o sistema formador e as demandas do sistema do sistema psiquiátrico e o lucro com a venda de serviços. “Certa ala da psiquiatria tem interesses contrários à Rede de Atenção Psicossocial e ao SUS e é capturada pelo modelo biomédico, quando não pelos laboratórios farmacológicos”, afirmou Rosana.
São muitos os desafios para uma nova visão de Saúde Mental, sejam postos pela desigualdade social e lacuna educacional brasileira, como também pelo descuido com os usuários. “Parte da população brasileira desacredita das políticas públicas não apenas porque viu na grande mídia, mas porque são muitas promessas não cumpridas por nós há anos. Cabe a nós tratar bem o usuário na porta do serviço”, refletiu Rosana Onocko-Campos, ressaltando que é papel da academia “repensar estratégias de formação, fazer com que haja mais acesso à informação. Precisamos redesenhar pesquisas para serem mais participantes e inclusivas”.