Ao abordar as relações da saúde com a política fiscal brasileira em artigo publicado em 11 de maio na seção Opinião do jornal carioca O Globo, Lígia Bahia, professora do Instituto de Estudos em Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IESC/UFRJ) e membro do Conselho da Abrasco, destaca que a Receita Federal não é o lugar devido de compreender os procedimentos e demandas da saúde da população. No entanto, devido à necessidade de abatimentos no Imposto de Renda para um Estado que não distribui o que arrecada, cidadãos são obrigados a fazer verdadeiros malabarismos fiscais, num complexo sistema que junta pagamento da assistência privada, desembolsos diretos e repasses de recibos que fazem a saúde ocupar lugar de destaque nas explicações daqueles que caíram na “malha fina”.
Para a professora, tal sistema, ao invés de funcionar como uma equiparação, amplia as contradições do sistema de saúde brasileiro. Ela sugere uma inversão de pensamento, no qual a Saúde possa ser um dos orientadores da lógica fiscal, e não ao contrário. “As instituições de saúde têm o que sugerir à Receita Federal, tanto para evitar o vaivém de doentes debilitados e o crescimento exponencial de informações sobre gastos com saúde, quanto para debater as perspectivas de transformar as renúncias fiscais em recursos para uma saúde pública cuja qualidade corresponda ao aumento dos tributos e dos esforços para os pagar”. Confira o texto na íntegra ou leia no site do jornal O Globo.
“Segue-se a entrega das declarações do Imposto de Renda a espera pelo veredicto do Leão. Serão liberados os que apresentaram demonstrações sem erros e os demais terão que comprovar rendimentos e deduções. A saúde e a omissão de renda são as principais causas de retenção na “malha”. Em 2014, aproximadamente um milhão de contribuintes foram convocados a esclarecer despesas médicas e omissão de remunerações. A legislação permite abatimento sem limites com saúde, mas os filtros da Receita Federal não deixam passar gastos julgados preliminarmente incoerentes e excessivos. Nos bancos de espera para apresentação de recibos sentam-se, entre despachantes de empresas, aposentados que pagam planos de saúde e internações e médicos por fora, e jovens cujos filhos fazem inúmeras sessões de terapias ou desembolsaram quantias elevadas com atendimento médico-hospitalar, a priori, incompatíveis com a renda declarada.
O aumento da frequência dos atendimentos referentes a problemas de saúde em um órgão que pouco ou nada conhece de diagnóstico e terapia é inusitado. A tendência de elevação dos preços dos planos e complementação da remuneração de serviços de saúde por meio de pesados desembolsos diretos, dependendo dos critérios de captura da Receita Federal, tende a levar mais brasileiros, inclusive gravemente doentes, a se justificar perante o Fisco. Sob parâmetros ajustados apenas por gastos e renda, situações cotidianas como pagar caro um plano e ter despesas com hospitais e médicos, avôs pagarem tratamentos para os netos, pais para os filhos ou o inverso, e solicitarem que o recibo seja expedido em nome do parente com menor renda, parecerão sempre incoerentes.
Órgãos que arrecadam impostos não são os mais apropriados para lidar com problemas de saúde. Ainda que cair na malha não seja uma acusação, e represente uma chance de demonstrar os gastos realizados, é duro ter que catar papéis que expressam muito mal trajetórias assistenciais e, sobretudo, a batalha para cuidar da saúde. A lei impõe ordem, mas causa confusão. O Imposto de Renda não é uma instituição brasileira, mas possui características nacionais, entre as quais a dedução sem limites de despesas com saúde. “Descontar” dos impostos devidos gastos assistenciais não é uma regra em todos os países. Reino Unido e EUA possuem normas que desestimulam radicalmente gastos privados e concedem abatimentos diferenciados por renda.
As interpretações sobre incentivos fiscais para que os contribuintes usem serviços privados de saúde são opostas. Podem ser considerados como compensação dos gastos realizados pelos contribuintes com serviços não atendidos pelo governo ou medidas de injustiça distributiva, porque subtraem recursos do orçamento para a saúde destinado a todos. No Brasil, de modo geral, as deduções com saúde são consideradas como uma pequena retribuição pelo não uso do SUS. O fato de quem não contribui para o Imposto de Renda, mas paga outros impostos, também ter despesas privadas com saúde, relativamente mais onerosas do que as das classes de maior renda, não causa maiores incômodos. Presume-se que o Estado não dá conta de um sistema efetivamente universal e descarta-se, indevidamente, a possibilidade de que a renúncia seja um dos vetores de iniquidade fiscal.
A cobrança de impostos, mesmo quando considerada importante para o desenvolvimento do país, é percebida como uma via de mão única: o Estado não redistribui o que arrecada. Menciona-se ainda o sacrifício da classe média que, ao contrário dos ricos, não tem como sonegar, a necessidade de contratação de serviços privados de saúde, educação e segurança, e a corrupção envolvendo recursos públicos. Não existem dúvidas sobre a modernização do Imposto de Renda, em relação às facilidades de preenchimento e envio de formulários pela internet, e à impessoalidade nos critérios de conferência das declarações. No entanto, a eficiência e a inovação da Receita Federal não se estendem, por exemplo, a hospitais e centros de saúde públicos.
Nada parece mais distante de expressar consenso do que o pagamento de um imposto que mobiliza a declaração individualizada de 20% da população adulta. A ênfase no controle, na fiscalização, na descoberta do que o contribuinte pode ocultar, estabeleceu uma institucionalização exótica: os bancos de dados da Receita Federal contêm informações que não são conhecidas pelas organizações de saúde. É verdade que práticas como as negociações de preços, com ou sem recibo de determinados médicos e dentistas, não foram inteiramente removidas. As normas repressivas provavelmente não conseguiram desfazer alianças informais entre estabelecimentos, profissionais de saúde e pacientes.
No entanto, é quase um erro gramatical supor que a saúde merece ocupar o centro da cena das fraudes e evasão fiscal. É contraditório estimular a demanda privada e depois apertar o cerco com medidas restritivas. As instituições de saúde têm o que sugerir à Receita Federal, tanto para evitar o vaivém de doentes debilitados e o crescimento exponencial de informações sobre gastos com saúde, quanto para debater as perspectivas de transformar as renúncias fiscais em recursos para uma saúde pública cuja qualidade corresponda ao aumento dos tributos e dos esforços para os pagar.”