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Se depender dos governos, o SUS não avança


1 de agosto de 2013Por Eron Rezende do Jornal A Tarde

 

[Foto de Fernando Vivas/Agência A Tarde]


Em posição de destaque na sala de trabalho de Jairnilson Paim, 64, no segundo andar do Instituto de Saúde Coletiva (ISC), na Ufba, estão exemplares da revista The Lancet, uma das publicações médicas de maior prestígio no mundo. O gesto guarda a retórica. Foi por meio de um artigo seu, publicado em maio de 2011, que países que inspiraram a criação do Sistema Único de Saúde (SUS), como Itália, Canadá e Inglaterra, conheceram melhor a complexidade do modelo brasileiro. Professor titular do ISC há 13 anos e autor dos livros O que é o SUS (2011) e Desafios para a saúde coletiva no século 21 (2005), nos quais avalia a importância do contato de estudantes de medicina com o sistema público, Paim faz as contas: embora o gasto per capita do governo brasileiro com saúde tenha quadruplicado em dez anos, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), o valor continua inferior ao de vizinhos da América do Sul, e quase seis vezes menor que o do Reino Unido; em 2011, o País teve uma despesa de 477 dólares por habitante. Uruguai e Argentina gastaram 800 dólares. "Esse é o nó: temos um direito à saúde constitucionalizado e sucessivos governos que preferem apresentar programas de ocasião em vez de encarar os desafios".  Em entrevista à Muito, Paim estende o raciocínio para  as recentes medidas anunciadas pelo governo federal, como a ampliação do curso de medicina, e avalia o  que considera ser um dos maiores gargalos para o aprimoramento do sistema público brasileiro: a formação dos médicos.

 

Há sete anos, no livro Desafios para a saúde coletiva no século 21, o senhor afirmou que era imprescindível a formação em saúde coletiva estar presente na graduação médica – e não em cursos de especialização somente. Em sua opinião, avançamos nesse aspecto?


Em parte, sim. Atualmente, existem 16 cursos de graduação em saúde coletiva nas universidades públicas do País. As primeiras turmas começaram a se formar no final do ano passado. Foi um grande avanço. Mas ainda há problemas graves. O maior deles é quando consideramos que as disciplinas de saúde coletiva apresentadas em cursos de medicina não são capazes de dar ao aluno uma base ampla do que é a realidade sanitária brasileira. Ainda que sejam importantes os hospitais-escola, a medicina é muito mais ampla do que os casos que são tratados ali. É um problema de estrutura dos cursos. As faculdades de medicina não possuem uma rede de prestação de serviços adequada para o ensino médico. Como professor, você não ensina o que de fato deve ser, mas o que as condições de um hospital das clínicas ou um centro de saúde, por exemplo, proporcionam. Quando digo que avançamos é porque antes não conseguíamos nem inserir a realidade da saúde coletiva na graduação. Mas estamos aquém, pois ainda não conseguimos contemplar de forma eficiente essa realidade.


A crise da saúde pública no País é, sobretudo, uma crise de formação?


É também uma crise de formação, na medida em que ainda não conseguimos formar profissionais capazes de compreender, com agudez, o SUS. E a questão da formação traz um problema gravíssimo, ético. Na formação médica existem diversas disciplinas voltadas para a ética. Mas ética não se ensina, se faz. Então, o estudante aprende pelo exemplo e não pelo discurso em sala. Se o professor ensina medicina enquanto pratica seu trabalho numa dupla militância, há um ruído. Muitos estudantes começam a notar que uma coisa é quando o professor está na rede pública e outra é quando ele está na rede particular. Essa dupla militância entre o público e o privado, cuja atuação não é igualitária como está na nossa Constituição, termina por comprometer os estudantes do ponto de vista ético. O SUS passa a ser o espaço desprestigiado – não me refiro aqui aos seus problemas, que são graves, mas a um juízo prévio por parte dos alunos.


A medida do governo federal, que ampliará o tempo de curso de seis para oito anos e exigirá atuação na rede pública de saúde, minimiza o problema?


A princípio, tenho um olhar positivo sobre essa medida. Em primeiro lugar, porque o conhecimento em medicina evoluiu muito. Será que os mesmos seis anos de quatro décadas atrás, quando eu me formei, são suficientes para formar o profissional de hoje? Possivelmente, não. O próprio acúmulo de conhecimento já justificaria uma ampliação do tempo de curso. Em segundo lugar, acho importante que alunos tenham essa experiência prática ampliada. Nos cursos atuais, isso só ocorre no sexto ano ou mesmo nas residências. Acredito que estender esse rito de passagem, do estudante para o profissional, enquanto ainda não se está constrangido por questões do mercado de trabalho, pode dar mais segurança ao próprio médico. Mas há uma condição imprescindível para que essa mudança seja bem-sucedida. Todo o processo precisa estar efetivamente vinculado a universidades e faculdades de medicina, que, por sua vez, possam se responsabilizar, com recursos adicionais do governo federal, por uma supervisão. Se isso não ocorrer, há o risco de isso ser apenas uma forma de se utilizar mão de obra barata para suprir lacunas do sistema público de saúde, numa experiência que não vai melhorar a qualidade médica, muito menos o atendimento à população.


O governo afirma que o modelo é inspirado no londrino NHS (Serviço Nacional de Saúde, na sigla em inglês). Até que ponto comparações com o NHS são válidas, já que a saúde brasileira é altamente privatizada, assemelhando-se muito mais ao modelo norte-americano?


Na guerra, a primeira sacrificada é a verdade. O governo está tomando decisões sem um debate com a sociedade, com as universidades. As medidas são unilaterais e impostas por medidas provisórias, num País que optou pela democracia e num governo que se dizia com compromissos sociais. Criou-se uma situação conflituosa. E, em situações assim, surgem argumentos pouco sustentáveis. A Inglaterra se responsabilizou, desde 1946, com um sistema público e universal de saúde. Tudo passou a ser gerido a partir de uma lógica pública, com hospitais públicos – o médico pode até ter sua clínica privada, mas todos os hospitais são públicos. O modelo que se impõe hoje no Brasil é um modelo híbrido, de atenção à saúde segmentada que, ao invés de ser igualitário como está na nossa Constituição, cria um apartheid sanitário. E a lista de oponentes ao SUS é imensa e forte, a começar pelo capital financeiro, que exibe sua lógica em hospitais privados e planos de saúde. Só que a lógica das leis de mercado na saúde é um desastre. Por isso se reclama tanto hoje a volta do atendimento humanizado.


Como obter essa humanização quando a dicotomia não é médico x paciente, e sim população x empresários da saúde?


Essa uma questão que, ironicamente, tem origem no nascimento do SUS. No mesmo momento em que concebemos o SUS, houve um processo econômico extremamente arrasador, de inflação a 80% ao mês. Numa situação tão dramática, as pessoas deixaram de se movimentar, de se organizar, porque a vida delas, a sobrevivência, era muito mais importante do que a cidadania. Muitos movimentos sociais que se organizaram para construir o SUS refluíram. E, então, Sarney chegou à presidência. E chegou com uma agenda neoliberal, de destruição da ideia de direito social. Numa leitura rápida: o governo distanciou-se do sistema de saúde público. Num contexto global, frente a crise do capitalismo, muitos países tiveram seu estado de bem-estar social suprimido. Margaret Thatcher quase acabou com o NHS, só não conseguiu porque os cidadãos não deixaram. Houve uma crise dos sistemas de proteção social no mundo justamente na hora em que nós estávamos querendo fazer o nosso. Toda essa ideologia foi anti-SUS. O SUS nasceu e foi como se o colocassem numa UTI neonatal, tirassem seu oxigênio e ainda o manejassem com algumas mãos contaminadas. Como equacionar a questão? O governo precisa reaproximar-se do SUS através de uma gestão, de fato, pública.


Numa tentativa de reaproximação, anunciou-se a intenção de contratar médicos estrangeiros. O maior problema é a falta de médicos ou a má distribuição desses no território nacional?


Os dois. Nós temos, em média, 1,8 médico para mil habitantes. Proporcionalmente, menos  do que os Estados Unidos. E jamais poderíamos ter menos médicos do que os EUA, porque eles não se comprometeram em ter um sistema de saúde universal, nós sim. Além disso, há uma má distribuição. Precisamos formar mais profissionais de saúde e movimentá-los para que  se comprometam com o SUS. Por outro lado, você não pode fazer somente a cabeça das pessoas. Você tem que dar condições objetivas para uma carreira de trabalho, tem que pagar um salário digno e dar condições para que possam exercer a profissão, em qualquer região do País.


Mas, ao mesmo tempo, prefeitos queixam-se da falta de médicos nas periferias e no interior mesmo quando a estrutura dos hospitais e as condições de trabalho são boas…


Os médicos, de modo geral, se enxergam como profissionais liberais. Um profissional que, em sua origem, era proprietário dos seus meios de produção: o sujeito com a malinha preta, o termômetro e o estetoscópio, que fazia diagnósticos e ainda tinha um controle da sua clientela e do valor de seu serviço. Essa é a visão que o médico tem de sua profissão. A ideologia da medicina liberal, que se aproxima muito do liberalismo econômico, da ideia de que o mercado é que define as coisas, que aloca os sujeitos em determinado espaço por competência ou falta dela, é a ideologia dominante na profissão. A retórica humanista, que os estudantes de medicina recebem das famílias e da sociedade, é outra concepção. Essas duas ideologias disputam a cabeça do estudante. É muito comum ver um menino todo bonitinho, todo preocupado com o humano, nos primeiros semestres. Quando chega ao quarto ano, ele é outra pessoa. Põe a roupinha branca e porta um conjunto de valores daquele profissional que, em sua cabeça, é a pessoa que venceu na profissão: o médico liberal. Só que menos de 5% dos médicos conseguem ter seu consultório. Então, tudo se  transforma numa grande decepção. Ele enxerga que terá sua autonomia cerceada seja pela lógica privada ou pelo SUS, que em sua visão é um lugar de condições de trabalho ruins.

 

O Brasil nunca resolveu o impasse do custeio do SUS, embora a Constituição de 1988 tenha universalizado o acesso à saúde. O senhor vê um esforço atual para que, de fato, as contas fechem?


Se formos esperar pelos governos, seja qual for a coloração partidária, o SUS não avançará: será eternamente um sistema pobre para pobres. E se o SUS for para pobres, quando pobres não têm voz política, o SUS não terá força política. Em 2011, o Senado aprovou a regulamentação da Emenda 29, que determina os gastos com saúde nos três níveis de governo, mas a bancada governista evitou que o texto final obrigasse a União a investir 10% de sua receita na área. Se olharmos os números, a  União vem se omitindo do financiamento. No entanto, com a inclusão do tema saúde na agenda política atual, via manifestação popular, as demandas estão sendo feitas. O governo está pressionado a dar respostas. Nesse aspecto, identifico  apenas uma via: o  financiamento do SUS só será resolvido se as pressões coletivas e organizadas continuarem.

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