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A segunda onda da Aids no Brasil

Vilma Reis

Ligia Kerr, coordenadora da pesquisa que entrevistou 4.176 homens de 12 capitais brasileiras. Foto Abrasco

No início de junho a imprensa brasileira divulgou números alarmantes sobre a prevalência de HIV entre homossexuais no Brasil, que saltou assustadoramente para 18,4%: a cada cinco cidadãos gays, praticamente um está infectado. Os novos números estavam no estudo HIV prevalence among men who have sex with men in Brazil: results of the 2nd national survey using respondent-driven sampling coordenado pela pesquisadora Ligia Regina Franco Sansigolo Kerr, do Departamento de Saúde Comunitária da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Ceará. A Abrasco ouviu Ligia Kerr, que ainda é membro da Comissão de Epidemiologia da Associação, sobre a situação da Aids no Brasil, o estigma, o preconceito e a discriminação como barreiras na resposta brasileira. E ainda sobre a falência total da prevenção dos mais vulneráveis e o perigoso crescimento da extrema direita no país que torna o trabalho da prevenção ainda mais desafiador.

Enviamos algumas perguntas por e-mail e Ligia generosamente nos respondeu com o artigo inédito A infecção pelo HIV entre homens que fazem sexo com homens no Brasil: registro de dois estudos ocorridos em 2009 e 2016. Ligia coordenou os dois estudos, de 2009 e 2016. O estudo de 2016 foi conduzido pelo Brazilian HIV/MSM Surveillance Group composto pelos seguintes pesquisadores (em ordem alfabética): Alexandre Kerr Pontes; Ana Cláudia Camillo; Ana Maria de Brito; Ana Rita Coimbra Motta Castro; Andrea Fachel Leal; Carl Kendall; Daniela Knauth; Edgar Merchan-Hamann; Hermelinda Maia Macena; Inês Costa Dourado; Lisangela Cristina Oliveira; Luana Nepomuceno Costa Lima; Maria Amélia Veras; Mark Drew Crosland Guimarães; Socorro Cavalcante. As opiniões expressas neste artigo são da autora e não refletem, necessariamente, a dos demais pesquisadores.

A infecção pelo HIV entre homens que fazem sexo com homens no Brasil: registro de dois estudos ocorridos em 2009 e 2016
Por Lígia Kerr

Há alguns anos, pesquisadores vêm anunciando o “fim da Aids”, baseados nos avanços dos tratamentos desenvolvidos para a infecção pelo HIV. Estas medicações representaram, sem dúvida nenhuma, avanços incalculáveis, que vêm salvando milhares de vidas, não só das pessoas contaminadas, mas de seus possíveis parceiros sexuais, que ficam mais protegidos pela redução da transmissão. Entretanto, a afirmação sobre o fim da Aids leva pouco em consideração a complexidade da sexualidade humana, os fatores culturais e sócio-político e econômicos das diferentes sociedades onde o HIV/Aids se apresenta como epidemia.

De fato, mais recentemente, contrário ao que havia sido afirmado, a literatura internacional começou a reconhecer o crescimento de casos da infecção pelo HIV entre homens que fazem sexo com homens (HSH) em diversos países. Esta é uma das populações-chave mais desproporcionalmente afetadas pelo HIV, e a este aumento de casos, alguns pesquisadores têm chamado de “segunda onda da Aids”.

Apesar do reconhecimento internacional deste fato, o Brasil caminhava na direção contrária. Em 2012, na 19ª Conferência Internacional de Aids em Washington, e em 2015, na câmara dos deputados, o governo assumia que a epidemia de Aids estava estabilizada no país. Este fato foi confirmado pelo então diretor do Departamento de IST/Aids e hepatites virais que, além desta afirmação, disse que “dormia tranquilo”, pois a epidemia no Brasil estava controlada.

Pesquisadores da área e Organizações Não Governamentais (ONG), em protesto, lançaram um manifesto intitulado “AIDS no Brasil hoje: o que me tira o sono?” onde explicitaram que a afirmação de que a epidemia de Aids no Brasil estava sob controle era falaciosa, e estava prejudicando a resposta nacional à epidemia, despolitizando a discussão e dificultando o acesso do país a financiamentos internacionais. Já se percebia, ou mesmo se documentava, que este discurso vinha na contramão do que os dados internacionais mostravam, e que, de fato, a epidemia vinha crescendo na população-chave composta pelos HSH.

As autoridades governamentais desconsideravam que o Brasil apresenta uma grande diversidade da epidemia, tanto no que diz respeito às diferentes populações atingidas em distintas proporções, como em relação às diversidades socioeconômico culturais do país. Os dados do Ministério da Saúde (MS) – sob um olhar mais criterioso, mostravam um aumento da taxa de Aids nas regiões mais pobres do país, e também entre os HSH, em especial os mais jovens.

No Brasil, a estimativa da prevalência da infecção pelo HIV na população de HSH era desconhecida até 2009. A sociedade civil, representada por ONG’s que atuavam fortemente junto a esta população e ao governo, vinha tentando postergar um estudo entre a comunidade receando que os resultados pudessem aumentar o estigma e a discriminação contra eles. Por outro lado, desconhecer a real situação levava recursos de prevenção para outras áreas.

Outro fator que dificultava o estudo é que esta população não pode ser pesquisada com técnicas estatísticas aplicáveis à população geral, requerendo métodos de amostragem especiais. Em escala nacional, estes estudos têm um alto custo. Governo e ONG’s decidiram juntos realizar o estudo. Dez cidades foram escolhidas nas 5 regiões administrativas do Brasil. A participação das ONG’s voltadas para estas populações foi expressiva e democrática, com acompanhamento de todo o processo que envolve a pesquisa. O resultado foi preocupante: a prevalência da infecção pelo HIV estimada para esta população foi de 12,1%, cerca de 20 vezes maior do que a prevalência na população geral.

Recomenda-se que estes estudos sejam conduzidos periodicamente em populações-chave. Apesar do período contido entre o primeiro e o segundo estudo ser mais longo do que o recomendado, o segundo estudo ocorreu em 2016, sete anos após, agora em 12 capitais brasileiras. O resultado foi muito além do que se imaginava: a prevalência subiu para 18,4%, ou seja, 46 vezes maior do que a população geral. Como explicar este aumento? O que ocorreu que pudesse explicar esta diferença tão significativa?

O crescimento da infecção pelo HIV entre os HSH era esperado pelos pesquisadores brasileiros. Uma das razões é devido a uma intensa redução das medidas preventivas voltadas a estas populações específicas que se iniciou logo após a realização do primeiro estudo. Campanhas governamentais foram coibidas por interferência direta daquilo que foi chamado Bancada BBB, termo empregado para se referir aos parlamentares armamentistas, bancada “da Bala”; à bancada ruralista, denominada “do Boi”; e à bancada evangélica, chamada “da bíblia”.

Estas bancadas se juntaram com o objetivo de votar agendas conservadoras que incluíram a proibição de atividades preventivas voltadas às populações chaves no Brasil, entre eles os HSH, as mulheres transgêneros, as profissionais do sexo e os usuários de drogas. A articulação destas bancadas passou a representar uma enorme ameaça aos direitos das minorias no Brasil. Cartilhas preparadas por profissionais altamente qualificados e que discutiam sexualidade nas escolas ficaram estocadas nos porões do governo federal, pois sua distribuição foi proibida por esta mesma bancada.

Os jovens foram profundamente afetados, pois iniciaram suas atividades sexuais em um tempo que nem se fala mais de Aids e marcado por um enorme crescimento do preconceito e da discriminação contra estes homens. Enquanto em 2008, vários programas como “Fomento a Projetos de Combate à Homofobia”, “Apoio a Serviços de Prevenção e Combate à Homofobia” e “Banco de Dados sobre Cidadania” foram apoiados e financiados pelo governo, desde 2015, os projetos para esta comunidade específica têm sido reduzidos, até que os repasses federais para estes programas específicos de defesa da comunidade LGBT chegarem a zero, no governo Temer, no final de 2017.

As mudanças sócio-políticas ocorridas no período, permitindo o extravasamento do ódio pelos pobres, negros e pelas minorias e a redução de políticas para diminuição da homofobia produziram um impacto no crescimento observado de cerca de 120% a 140% no relato de ter sofrido história de discriminação por estes homens, registrado entre os estudos de 2009 e 2016.

As ONG’s, instâncias mais próximas da comunidade HSH que trabalhavam com esta população e que sempre foram parceiras importantíssimas do governo no direcionamento das análises da epidemia e nas ações preventivas a serem tomadas, ficaram totalmente sem financiamento governamental, e a maioria acabou fechando suas portas. Uma enorme porta da prevenção foi fechada para esta comunidade. Como resultado de todas estas políticas, a redução do uso do preservativo tem sido observada em praticamente todas as populações, tanto entre pessoas que se identificam como heterossexuais, como entre os homossexuais. O estudo de 2016 registra um crescimento de relações sem camisinha de 24%, entre jovens.

A camisinha é uma estratégia muito importante na prevenção da transmissão da infecção, mesmo não sendo a única. Além da redução do uso do preservativo, cresceu, entre os HSH, a percepção de que eles têm pouca chance de se infectar pelo HIV. Por outro lado, decresceu o percentual entre a comunidade daqueles que nunca se testaram para o HIV.

Outro aspecto observado foi um aumento expressivo do número de parceiros sexuais e da busca de parceiros, muitas vezes anônimos, através do uso de novas tecnologias como apps tipo Grindr, Hornet, Tinder e WhatsApp. Estudos mostram que estes usuários relatam altas taxas de parceria sexual e relações anais desprotegidas. E a maioria daqueles que usam estes aplicativos acham que estão sob menor risco de se infectar pelo HIV.

Observou-se, ainda, uma espécie de “banalização” da Aids, uma doença hoje crônica, mas ainda sem cura, e cujos tratamentos podem trazer inúmeros efeitos colaterais. Jovens afirmaram na pesquisa de 2016 que “a Aids não assusta mais”. Como dito anteriormente, o tratamento da Aids foi um enorme avanço clínico, epidemiológico e político. Soma-se ao tratamento, estratégias preventivas importantes como PEP, uma medicação tomada após um evento de risco com alguém que pode estar contaminado, ou a PrEP, que é uma forma de pessoas que não têm HIV, mas que correm um risco considerável de adquiri-lo, evitar a infecção pelo HIV, tomando uma pílula que contém dois medicamentos (tenofovir e emtricitabina) que são usados em combinação com outros medicamentos para tratar o HIV. Enquanto países desenvolvidos já usam a PrEP há alguns anos, no Brasil, só foi implementada pelo governo no final de 2017.

Entretanto, o uso dos medicamentos não deve passar a ser uma resposta biomédica que venha a substituir ou reduzir as respostas sociais e políticas. A sexualidade humana é algo muito mais complexo, para se acreditar que o êxito do controle da epidemia possa ser simplesmente fruto apenas da disponibilidade de medicações. Existem diferentes estratégias de prevenção e tratamento precoce que fazem parte de um complexo de medidas preventivas disponíveis e que esta comunidade precisa ter acesso.

A própria comunidade precisa conhecer o que está acontecendo com ela para criar e implementar aquelas estratégias que mais lhe sejam apropriadas para redução da infecção. Pouco mais de 50% da população ao redor do mundo que precisa tomar a medicação para o HIV está, de fato, tendo acesso. Entretanto, medidas neoliberais estão cortando direitos básicos da população, como emprego, saúde, alimento de qualidade.

No Brasil, a PEC 55 (Promulgada em dezembro de 2016, esta EC nasceu da Proposta de Emenda Constitucional PEC 241 que, no Senado, virou PEC 55) medida que congela por até 20 anos as despesas do Governo Federal, com cifras corrigidas apenas pela inflação, promove cortes que têm atingido tragicamente o Sistema Único de Saúde, maior responsável pelo tratamento da Aids no país. A PEC 55 significa uma redução de investimento em áreas como saúde e educação, ameaçando promover, em poucos anos, um enorme fosso de desigualdade e um contingente significativo de pessoas infectadas fora do tratamento.

Como dizia o manifesto dos pesquisadores em resposta ao governo, é necessário redirecionar os esforços para o enfrentamento da epidemia nas populações mais expostas ao risco de infecção, articulando-as com ações para a população geral. É necessário recuperar princípios essenciais, como reconhecimento do problema e mobilização da sociedade em busca de soluções, que neste caso não são simples, mas são factíveis. Infelizmente, esta não parece, nem de perto, ser a opção do governo que hora conduz o país.

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