De principal inovação e acesso efetivo de mais de 130 milhões de brasileiros ao sistema de saúde para tornar-se objeto de disputa de mercado e caminho de privatização e redução de direitos, os 30 anos de experiências e resultados da Atenção Primária à Saúde no Brasil (APS) estiveram em destaque no seminário organizado pela Rede de Pesquisas APS realizado em 20 e 21 de março, nas dependências da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (ENSP/Fiocruz). A atividade foi um dos seminários preparatórios do 12º Congresso Brasileiro de Saúde Coletiva- Abrascão 2018, que acontecerá de 26 a 29 de julho, no campus Manguinhos da Fiocruz, no Rio de Janeiro.
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Na abertura realizada no auditório térreo, Lígia Giovanella, coordenadora da Rede APS e pesquisadora da ENSP/Fiocruz, fez uma homenagem à Marielle Franco. “Com sua luta e vida, Mariellle deu voz a 60 mil cidadãos assassinados anualmente no país. Solidária defensora dos Direitos Humanos, concentrou suas energias, beleza, alegria e juventude no enfrentamento das injustiças sociais e em prol da redução das desigualdades sociais. Sua execução mostra o lado sombrio do atual momento em que vivemos, que beira o fascismo e engendra novas formas de autoritarismo. Não vamos deixar calar sua voz, Marielle, ela permanece em nós”, se emocionou Lígia, entoando um grito de Presente, acompanhada pela plateia.
As efemérides da chamada do evento serviram de disparador para presidente do Conselho Nacional de Saúde (CNS), Ronald Ferreira dos Santos, e os pesquisadores-docentes Rosana Aquino (ISC/UFBA), Davide Rasella (Cidacs/IGM/Fiocruz) e Luiz Facchini (DMS/FM/UFPel) exporem alguns dos porquês da APS apresentar mesmo tempo indicadores positivos, grandes fragilidades e disputas de interesses entre públicos e privados, em especial no momento atual.
O SUS com evidência de cidadania e de democracia, e a Estratégia Saúde da Família (ESF) como tecnologia de acesso e garantia do direito à saúde foram os marcos da fala do presidente do CNS, que denunciou o esvaziamento técnico e político dos órgãos do Ministério da Saúde e da gestão do SUS na gestão de Ricardo Barros. “As mudanças na política de Saúde Mental, na PNAB, no debate dos blocos de financiamento, no poder regulador da Anvisa, é uma série de eventos e medidas que concretizam um esvaziamento e desmonte real de um sistema de saúde que nós e milhões de brasileiros construímos no dia a dia”. Ronald convocou ainda a participação de todos na marcha na Semana da Saúde, em 04 de abril, e o reforço ao abaixo-assinado contra Emenda Constitucional 95 (EC 95).
“Engraçado observar que chegamos a pensar que eles não se interessariam nunca por Atenção Primária, que não dava dinheiro, enquanto hoje vislumbramos que o mercado quer sim a consolidação de uma forma hegemônica de APS, de serviços baratos e acesso e atendimento precários”, precisou Rosana Aquino, professora do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia (UFBA).
Ela saudou a iniciativa da realização do seminário como evento preparatório do Abrascão 2018. “Essa é uma agenda estratégica que nossa Associação nos convoca para o Abrascão, para fazermos um congresso de luta, que discuta saúde, ciência e direitos sociais, que evidencie a nossa luta pelo SUS. Não poderia deixar de falar da felicidade de estar aqui, que para mim, é essa felicidade do lutar em coletivo”.
A professora expôs um conjunto de dados, referenciais históricos e programas já implantados em 30 anos da APS nos serviços de saúde, mas que só começaram a mostrar impactos efetivos na saúde da população com o fortalecimento e indução do ESF, a partir dos anos finais da década de 1990. Para Rosana, o principal marco da ESF e da Política Nacional de Atenção Básica (PNAB) até então foi reorientar o sistema público como fonte usual para cuidados de saúde da maioria da população. “A APS aumenta a fonte usual no entorno, na UBS, e não nas emergências e nas unidades de referência. O modelo que querem é o retorno da farmácia, da clínica pequena paga pelo plano popular como fonte de cuidado.” Destacou ainda que a revisão da política, realizada a toque de caixa no ano passado, não é uma política deslocada, mas apoiada pela agenda neoliberal de ajuste fiscal e de atração de mercados, com respaldo político. “Terrível ver entidades que sempre estiveram ao lado do SUS se comportar dessa maneira e aprovarem a redução na carteira de serviços sem questionamentos”, disse a pesquisadora, em crítica direta às entidades da gestão.
Rosana encerrou ainda apontando que o desafio da informatização, que poderia dar o devido salto de qualidade e acesso do SUS no país, esbarra na lentidão de implementação e na sua própria existência. “Precisamos ficar atentos ao desmonte do nosso sistema de vigilância e informação por esses mecanismos de sufocamento. A luta para implantar o E-SUS esbarra justamente na falta de interesse em informatizar as UBS e obter assim informações para a prestação do cuidado”.
+ Acesse a apresentação de Rosana Aquino
Com os dados da última PNAB e por meio de modelagens matemáticas, Davide Rasella, professor convidado do ISC/UFBA e pesquisador associado do Centro de Integração de Dados e Conhecimentos para Saúde (Cidacs/IGM/Fiocruz) apresentou dados preliminares do estudo que relaciona as políticas de austeridade do governo Temer com a mudança nos quadros de saúde. Em diálogo com pesquisas nacionais e internacionais que trazem esse veio de investigação, Rasella destacou que disputamos tanto narrativas como condições reais de reprodução da vida. “O PIB concentrado vai contra a narrativa da austeridade, mas mesmo assim ela prevalece. Por que a crise não afeta essa parcela menor de 1% e que concentra esse PIB. Nossos estudos têm de refletir isso”, provocou.
A modelagem realizada para a análise de um grande volume de dados de coortes já sistematizadas pelo Cidacs e demais institutos fez projeções para cenários de crise curta (até 2018), média (até 2020) e longa (2022). Para Rasella, em todos os cenários, fica evidente o distanciamento entre a projeção de crescimento do PIB e o investimentos sociais estrangulados pela EC95. “O que impressiona é a derivação da curva. É justamente quando os recursos da economia deveriam produzir melhoras para justamente sair da crise que se agravam os efeitos da austeridade”.
A austeridade tira vidas: Nas projeções do pesquisador, a manutenção do ajuste deixa de evitar cerca a morte de 20 mil crianças até 5 anos e até 250 mil óbitos por doenças infecciosas e crônicas, para as quais já programas de assistência e prevenção. “As doenças sensíveis à pobreza são também às mais sensíveis à aplicação das medidas fiscais, o que faz perceber como a redução do Estado de Bem-Estar Social pode trazer malefícios e resultados negativos à saúde da população”, completou o italiano. Por se tratarem de dados preliminares e em pesquisa, a apresentação não foi disponibilizada.
Numa fala franca e direta, Luiz Augusto Facchini, professor do Departamento de Medicina Social da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Pelotas (DMS/FM/UFPel) e presidente da Abrasco (2009-2012), defendeu que a Atenção Básica, e em particular a ESF, foi a principal inovação do SUS, e que seus desafios para consolidação e ampliação dependem centralmente do investimento agora garroteado pela Emenda. “Nossa grande preocupação é que os avanços observados ao longo de 30 anos de SUS e mais de 20 anos de ESF estão ameaçados por toda essa conjuntura de desmonte de direitos sociais que o nosso país experimenta”.
Facchini evidenciou dados que mostram que mesmo com a presença de mais de 40 mil equipes de SF no território nacional há grandes limitações no acesso de segmentos da população e na qualidade do serviço a elas prestado. “Mesmo programas como o Pré-natal, que alcançam mais de 98% das gestantes com pelo menos uma consulta, e cerca de 80% com seis ou mais consultas durante a gestação, apenas a metade realiza exame ginecológico nas unidades de saúde, o que é uma lástima. O atendimento a pessoas com doenças crônicas é outro exemplo de programa que carece de completude das ações previstas nos protocolos e diretrizes”.
+ Acesse a apresentação de Luiz Facchini
À tarde, os participantes dividiram-se nos grupos temáticos Força de trabalho e práticas profissionais em APS; Modelo de atenção e impactos na organização dos serviços; Financiamento e gestão da APS. Os pontos de destaque de cada grupo foram sistematizados em plenária e debatidos no dia seguinte, na reunião do Comitê Gestor da Rede. “Após breve apresentação dos destaques dos documentos, sintetizamos os principais pontos para compor a agenda estratégica da APS no SUS e que estaremos finalizando a redação nas próximas semanas”, explicaram os coordenadores Lígia Giovanella e Facchini durante a reunião da Comissão Científica do Abrascão 2018.
+ Leia o documento final do encontro, contribuição ao Abrascão 2018
“A Abrasco e a Rede APS se constituíram em espaços importantes para a reflexão, a prática política e a intervenção social. Aproveitamos o calendário de eventos da Associação e de demais entidades parceiras para identificar agendas e temas de pesquisa e sistematizar informações e conhecimentos disponíveis. Além da intervenção política em torno da Atenção Básica e da defesa do SUS, queremos que o Abrascão articule um conjunto de ações para estender especialmente o debate da integralidade, diretriz do Sistema mais comprometida tanto verticalmente, no contexto dos diferentes níveis de atenção, como horizontalmente, ao interior de cada unidade básica”.
Assista abaixo o vídeo da abertura e clique em Playlist para ver na íntegra as intervenções dos quatro palestrantes: