Integrando saberes, a capital da Paraíba acolheu um dos Seminários Preparatórios para o 12º Congresso Brasileiro de Saúde Coletiva – o Abrascão 2018 e colocou em debate o Sistema Único de Saúde – SUS diante das Violências. Durante os 3 dias de encontro (20, 21 e 22 de março), a programação científica relembrou a história e pontuou os desafios da aproximação da saúde coletiva e das ciências sociais com o tema da violência. Houve ainda momentos de apresentações de vivências onde os processos de resistência por lideranças de movimentos sociais, grupos profissionais ou organizações de usuários que vivem e enfrentam dimensões da violência em saúde eram apresentadas coletivamente.
O Seminário foi organizado pela Abrasco em parceria com o Grupo de Pesquisa de Educação Popular em Saúde, vinculado ao Programa de Pós-graduação em Educação da UFPB, com a Comissão de Ciências Sociais e Humanas em Saúde, da Abrasco e ainda com a Secretaria de Estado da Saúde. Eymard Vasconcelos, foi o anfitrião do evento juntamente com Pedro Cruz, ambos do GT Educação Popular em Saúde, da Universidade Federal da Paraíba e da Comissão de Ciências Sociais da Abrasco.
Para Eymard, o Seminário significou, entre outras coisas, uma articulação de diversos grupos da saúde coletiva paraibana, que andavam desintegrados, na construção de algo muito significativo: a construção de um primeiro evento da Abrasco em João Pessoa: – “E o reconhecimento e a valorização de algo que vem caracterizando a nossa caminhada: um agir mais integrado com a sociedade civil, principalmente pela força da extensão orientada pela educação popular entre nós. Isso nos ajuda a encontrarmos nossa identidade própria. Foi importante sentir a satisfação de muitos profissionais de saúde estarem em um evento em que tinham a oportunidade de dialogar com profundidade e organização sobre temas mais próximos de seus desafios concretos de trabalho. E sentir que conseguimos avançar em direção a uma metodologia de estruturação de um evento científico que valoriza diferentes formas de saber sobre o tema, buscando integrá-los. Temos muitos sanitaristas com caminhadas significativas em seus campos específicos, mas que ainda não se sentiam à vontade para participarem ativamente da Abrasco. Houve muito avanço nesse sentido”, pontuou Eymard.
Especificamente sobre a coordenação da Roda de Conversa “Compartilhando e debatendo as reflexões das diferentes rodas de conversa” Pedro Cruz explicou que o momento serviu para socializar questões, reflexões e apontamentos construídos pelo público participante durante a programação: – “Rodas de Conversa foram desenvolvidas em dois momentos: um mais centrado no compartilhamento coletivo de vivências e de experiências das pessoas participantes com as violências no SUS e suas dimensões em diferentes frentes (sistema prisional, saúde indígena, violências praticadas pelos profissionais, violências contra os profissionais, violências na formação em saúde, violências nas relações de gênero, racismo e saúde); e outro centrado na construção compartilhada e dialógica de estratégias e propostas de enfrentamento a essas faces das violências no SUS”.
Pedro destaca ainda que toda essa construção se deu de maneira compartilhada com protagonistas de diferentes entidades, cujo apoio e dedicação foram essenciais para ser possível promover um encontro com tanta diversidade e espaço para o diálogo: – “Foram elas: a Secretaria de Estado da Saúde da Paraíba, o Grupo de Pesquisa Saúde, Sociedade e Cultura (GRUPESC/CCHLA/UFPB), Secretaria Municipal de Saúde de João Pessoa, o Centro de Ciências Médicas (CCM/UFPB), o Centro de Ciências da Saúde (CCS/UFPB), o Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes (CCHLA/UFPB), a Rede de Educação Popular em Saúde, a Articulação Nacional de Extensão Popular e a Coordenação de Educação Popular (COEP/PRAC/UFPB)”, explica.
Ainda para Pedro o Seminário teve um papel significativo no que se refere a explicitação das construções grupais, com espaço não apenas para cada grupo colocar as sínteses de suas discussões, mas empreenderem diálogos sobre conflitos, tensões, discordâncias e complementações entre as construções das várias rodas. Tudo isso com a intencionalidade de valorizar a potência do trabalho coletivo e da capacidade das pessoas e seus diferentes saberes e seus diferentes lugares contribuírem com propostas e com novas perspectivas ricas, mobilizadoras e grávidas de caminhos transformadores da realidade do SUS e da saúde coletiva brasileira, sobretudo no que tange ao tema das violências: – “O conjunto de sínteses foi, nesse momento, escutado por debatedores convidados especialmente para contribuir com a elaboração de prioridades para a Carta de João Pessoa, que será o principal produto do seminário preparatório. Esses convidados foram vindos de diferentes lugares e de diferentes saberes, e compartilharam seus apontamentos. Essa proposta logrou êxito em desenvolver na prática a proposta do seminário em dar espaço e protagonismo aos diferentes saberes e práticas em saúde, com valorização com dignidade e respeito às suas experiências, mas fundamentalmente às reflexões , formulações e conhecimentos que acumulam em seus espaços. A partir do sucesso do seminário preparatório e de sua construção nessa lógica, estamos discutindo no âmbito da CCSHS e da comissão organizadora local do 8o Congresso Brasileiro de Ciências Sociais e Humanas em Saúde, a inclusão das rodas de conversa como espaço estratégico na perspectiva da construção compartilhada de caminhos, alternativas, propostas e conhecimentos para os desafios e situações-limite apontados ao longo do evento”, resumiu Pedro.
Durante o Seminário houve ainda uma reunião da Comissão de Ciências Sociais e Humanas em Saúde da Abrasco. A Comissão tem avançado na organização do 8º Congresso Brasileiro de Ciências Sociais e Humanas em Saúde (8º CBCSHS), a ser realizado em João Pessoa, em 2019. Para Martinho Braga Silva, coordenador da Comissão, uma das lições aprendidas durante este Seminário Preparatório tem a ver com a importância de valorizar as experiências protagonizadas pela sociedade civil organizada no enfrentamento da violência: – “Bem como considerar a conjuntura política, social e econômica que vivemos no Brasil para formular qualquer proposta que se pretenda viável”, refletiu.
Exercício concreto de Ecologia dos saberes
Sobre o aprendizado deste Seminário, Leny Trad, vice-presidente da Abrasco, professora da UFBA e membro da Comissão de Ciências Sociais, destaca que, do ponto de vista da metodologia foi um exercício concreto de Ecologia dos saberes: – “É uma abordagem que vem sendo propagada, mas que a gente precisa exercitar. Considerar as muitas vozes da saúde, as muitas vozes que estão hoje lutando nas frentes mais diversas e resistindo ao desmonte que o SUS tem experimentado, mas principalmente resistindo lutando e contra as muitas expressões de violência no brasil, na atualidade. Não que a violência seja apenas na atualidade, a maioria delas são violências estruturais, que vêm construindo um modo de existirmos. Uma primeira coisa diz respeito à metodologia, a perspectiva que foi adotada aqui permitiu a escuta e a vocalização dessas muitas vozes. Nesse sentido, se combinou as rodas de conversa, que seguiram à risca os 3 elementos destacados no evento. De um lado a vivência, muitos relatos vindo dos serviços, das organizações não governamentais, das universidades – de estudantes e professores. As resistências, o 2º componente, exemplos claros de resistência no front institucional de pessoas que passaram 20 anos atuando na política de enfrentamento de violência do Ministério, mas que hoje foram desligadas e continuam batalhando do lado de fora; [resistência] de representantes dos indígenas, da população negra, de grupos que atuam por exemplo no contexto das pessoas privadas de liberdade, dentro do sistema prisional… essa metodologia das rodas de conversa pautando esses elementos – que primeiro era identificar o problema a partir das experiências de cada um e do seu conhecimento e num segundo momento trazer as propostas foi muito eficaz”, pontuou Leny.
Sobre a contribuição do Seminário para o Abrascão 2018, Leny explica que o documento abordará de um lado uma luta ampliada para defesa das políticas – tanto a específica de enfrentamento de morbidades e mortalidades relacionadas com acidentes e violências, que teve uma construção importante no brasil, se criaram núcleos em todo o país, a própria ideia do registro dessas ocorrências – e tudo isso foi se desmontando: – “É uma prioridade de resgatar essas políticas, recuperar o que está sendo desmontado e se avançou durante quase 20 anos de construção. Mas também, no conjunto da políticas específicas, de saúde da população indígena, de saúde da população negra, de saúde das mulheres, da população trans, de humanização – a dimensão e o problema e enfrentamento da violência está também sinalizado. É uma articulação que vai desde resgatar, efetivar fortalecer a política de enfrentamento da mortalidade associada à violência, mas também de como essa temática da violência vem sendo abordada nas várias políticas específicas de saúde que nós temos. No plano intersetorial é importante reconhecer que a violência atravessa a saúde, que envolve necessariamente o âmbito dos direitos humanos, da justiça, da educação e precisa que essa intersetorialidade ocorra. Foi muito destacada a necessidade de reconhecer a ação dos movimentos sociais e particularmente lembrar que se a palavra de ordem é “nada de nós sem nós” muitas das vítimas da violência – e aqui a gente tá falando da violência estrutural, inclui-se aqui a pobreza, a desigualdade ; da violência institucional – que é praticada inclusive na saúde, exemplo da violência obstétrica, da violência com gênero, com discriminação racial – a que se dá de forma simbólica e física, a violência doméstica… essa multiplicidade da violência . Existem movimentos sociais que estão trazendo isso para as suas pautas, estão atuando, é importante que esse movimento seja reconhecido e que aqueles que atuam no contexto da saúde se articulem e se juntem a esses movimentos. Finalmente, o terceiro aspecto diz respeito à formação: foram muitos depoimentos de estudantes de áreas diversas da saúde que colocaram a insuficiência e a superficialidade do debate na sua formação sobre violência, uma temática que segundo esses estudantes é muito pouco explorada e Às vezes quase ignorada mas também do ponto de vista da formação dos profissionais que já estão atuando com a ideia de educação permanente, é muito importante que essa temática passe a ser um conteúdo presente nessa formação de uma maneira sistemática”, diz Leny e arremata “Precisamos colocar para os abrasquianos, que a violência constitui violação de direitos, e é nessa direção que ela precisa ser enfrentada”