Em sintonia cada vez maior, os campos da Saúde e do Judiciário encontraram-se na manhã de 1º de julho na abertura do Seminário Internacional: Maconha: usos, políticas e interfaces com a saúde e direitos. O evento aconteceu na Escola de Magistratura do Rio de Janeiro (Emerj) e reuniu especialistas, gestores de políticas públicas, pesquisadores, advogados e juristas que vêm se debruçado sobre o tema na perspectiva de pensar alternativas e realizar o debate de maneira lúcida e crítica.
A abertura dos trabalhos foi conduzida por Paulo Gadelha, presidente da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz); Sérgio Verani; desembargador do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro e presidente do Fórum Permanente de Direitos Humanos, e Caetano Ernesto Costa, presidente da Emerj e também desembargador do TJRJ.
As incongruências da lei 11.343/206, que atualmente rege os aspectos legais das drogas no Brasil, foram apontadas pelo desembargador Verani. “Ainda se criminaliza o uso e a produção para consumo próprio, o que obstaculiza princípios da própria lei brasileira de drogas. Nós aqui estamos fazendo valer a lei, ao promover e socializar o conhecimento sobre o assunto, pois quando restrito ao senso comum, é carregado de estigma e preconceito”.
Gadelha abordou a agenda regressiva a qual vem sendo submetida à sociedade brasileira e o compromisso da Fiocruz com o tema. “Muitos perguntam por que a Fiocruz está tão empenhada nesse assunto. Para além da Saúde Pública, essa é uma questão essencial. Não há tipo de evidência científica que possa distinguir as substâncias líticas das ilícitas, que são avaliadas em nossa sociedade apenas de maneira arbitrária, fruto de construções políticas, sociais, de quem elegemos como criminosos e vítimas”, sentenciou o presidente da Fundação, destacando ainda que a Assembleia Geral da ONU sobre Drogas (UNGASS, em inglês), a ser realizada no próximo ano, será uma oportunidade mundial para a reavaliação de conceitos como a guerra às drogas. “É preciso enfrentar esse tema de maneira ousada”, ressaltou.
O desembargador Caetano Costa agradeceu a presença de todos e afirmou que o Judiciário tem de estar aberto a todos os temas da sociedade e que o tabu sobre as drogas, formatado na cabeça de muitos daqueles que cresceram sob a ordem constitucional da ditadura militar brasileira, precisa ser superado. “Os próprios eventos que discutem a temática são mal vistos por pessoas tradicionalistas. Para vencermos esse desafio, é preciso debater de verdade a questão das drogas”, afirmou.
O Uruguai e o lugar da Saúde Pública na discussão das drogas: “Falar de drogas, saúde e direitos no século XXI é falar da crise de paradigmas, da crise de conceitos e de sentidos”. Com essa fala, Julio Calzada abriu a conferência sobre a experiência uruguaia na regulamentação da maconha. O sociólogo foi um dos responsáveis pela criação da legislação e estruturação – em processo – do sistema de regulamentação completa da cannabis sativa quando esteve à frente da Junta Nacional de Drogas daquele país.
Sociólogo de formação, ele reafirmou a importância do debate sobre a maconha ter franqueza intelectual e ser despido do mito da neutralidade para impedir que questões morais e acadêmicas comumente não explicitadas não turvem ou impeçam a discussão social, posicionando-se claramente como um agente da saúde pública. “Falo do lugar da saúde pública, de um continuum que cobre as condições dos homens que recebem as ações de projetos sociais em seus corpos e estão em constante construção das nossas noções de enfermos e de saudáveis. Falo do lugar de uma saúde que não é mercantilizada, mas sim um direito”.
Segundo Calzada, a cruzada do Uruguai no debate sobre as drogas vem desde 2005, quando dos primeiros debates sobre mudanças das implicações jurídicas dos atores sociais e, novamente em 2008, quando da realização da última reunião da UNGASS, na qual a representação diplomática do país tentou protocolar um debate mais amplo, porém sem consenso, estabelecendo-se justamente o caminho contrário, o da guerra às drogas.
A realidade mostrou aos uruguaios que seria necessário começar pela ordem doméstica, e, de 2009 a 2012, uma disparada na taxa de mortalidade entre adultos em 50% e aumento de registros de crimes e disputas do narcotráfico elevaram as pressões da opinião pública por mudanças, mesmo que muitas vezes, de aspecto conservador.
Já sob a presidência de José Mujica, o governo decretou 15 medidas de combate à criminalidade, como a regulação do horário de programas policiais na televisão e a regulamentação da maconha. “A percepção social faz parte da realidade, queiramos ou não”, advertiu o sociólogo. Poderíamos ter adotado o modelo de guerra às drogas, mas optamos pela convivência, pois não existe sociedade humana sem o consumo de substâncias, como o álcool e a maconha”.
O primeiro passo foi a criação da Junta que Calzada foi secretário-geral, um instituto de direito público que pudesse regulamentar e traçar diretrizes para os usos recreativo, medicinal e industrial da cannabis.
Para o uso recreativo, foram definidas três formas de se adquirir maconha: o autocultivo, ingresso em clubes canábicos, para produção e aquisição coletiva, ou pela compra em farmácias regulamentadas pelo governo, criadas em agosto do ano passado. Cada indivíduo pode comprar até 40 gramas de maconha por mês. “No caso do autocultivo ou dos clubes, no entanto, não é possível, por exemplo, pegar a maconha e vender na praça. Quem fizer isso estará incorrendo em crime e pode ser preso”, afirmou Calzada. Foram estabelecidas seis variantes da planta para produção legal, buscando assim identificar e garantir o controle do produto nas zonas fronteiriças. Das 25 empresas que demonstram interesse em explorar os princípios ativos da cannabis e as fibras do cânhamo, 11 já foram selecionadas.
Perguntado sobre a força e as estratégias do tráfico em tentar burlar a regulamentação, o ex-secretário destacou que preço e acesso são os mecanismos determinantes para o consumo de quaisquer substâncias consideradas ilícitas. O governo fez um levantamento sobre os valores praticados no mercado ilegal, que serviu de referência para o preço praticado nas farmácias. “Hoje já temos 3 mil uruguaios que cultivam e não tem contato com o tráfico e uma rede de farmácias vendendo ao preço da boca, com qualidade regulada”. O objetivo é chegar a mil estabelecimentos em todo o território nacional.
Quando a repressão estrangula a produção do conhecimento: A primeira mesa redonda do seminário trouxe as diferentes visões e interfaces da esfera pública com a planta, seus consumos e abordagens. A mediação foi de Isabela Soares, professora da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (ENSP/Fiocruz) e vice-presidente do Centro Brasileiro de Estudos da Saúde (Cebes).
A primeira participação foi de Francisco Ignácio, médico de formação, pesquisador do Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde (ICICT/Fiocruz). Ele destacou que o debate sobre o tema tem ocorrido em todo o ocidente, hora com maior ou menor liberdade, mas que, na grande maioria dos países, a construção de uma política de drogas não guarda relações com áreas centrais da exploração científica, como a toxologia e as neurociências. “Cada vez mais temos uma produção científica rica e diversificada que não se transforma em políticas públicas objetivas.
Responsável pelo Inquérito Nacional sobre usuários de crack e coordenador do Programa Institucional sobre Álcool e Drogas da Fiocruz, Ignácio aponta a maconha como um consumo “no fio da navalha”: mais do que nenhuma outra droga, ela carrega polaridades como legal/ilegal; terapêutico/danoso. Para ele, a ciência brasileiras tem papel fundamental em explorar essas relações, mas tem esbarrado nas limitações impostas pelo sistema CEPs/CONEP. Prestes a iniciar novo estudo nacional sobre o consumo de substâncias, ele foi enfático de que o papel da ciência é explorar e o da medicina é de lutar, entre outras coisas, pelo alívio dos sintomas e das situações de risco, o que só acontecerá se a produção de conhecimento se mover de estudos específicos e de impressões sobre pesquisas estrangeiras para investigações sistêmicas sobre todos os usos de substância, seja para afirmá-los, seja para refutá-los. “Temos de produzir nossos próprios estudos. Isso não é uma agenda nova, mas é imperiosa. A ciência brasileira precisa enfrentar essas questões de uma forma não preconceituosa”.
Em diálogo com o inquérito sobre os usuários de crack de Ignácio e com o debate social sobre as mudanças na idade penal adulta, Leon Garcia, Diretor de Articulação e Coordenação de Políticas da Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas do Ministério da Justiça (SENAD/MJ) trouxe dados do sistema prisional para mostrar o quão seletivo e limitado são as abordagens e as prisões relacionadas ao universo das drogas. A maior parte das apreensões se deu em flagrantes na via pública e em rondas de rotina a lugares já mapeados e de grande vulnerabilidade social. O perfil mais comum nos registros de encarcerado é o de homens negros e/ou pardos, entre 18 a 29 anos, que não chegaram ao Ensino Médio, em situação primária e que se encontravam desarmados no momento da prisão. Para ele, o quadro mostra a grande diferença que existe entre os ditos “traficantes” e os “empresários das drogas”, uma separação comum em documentos legislativos sobre o tema.
Assim como na abertura, Garcia mostrou diversas incongruências da lei 11.343/06 que, se por um lado despenalizou o uso, por outro lado não definiu de forma objetiva os limites que separam usuários e traficantes e ampliou o tempo de encarceramento. “Se usássemos as legislações de outros países nesses dados, veríamos reduções nesses índices. E falo de países com políticas comprometidas com a sociedade. Temos de encarar o tema e debater novamente a legislação e, caso for aprovada a descriminalização no Supremo Tribunal Federal, será necessária a definição de critérios objetivos sobre porte, consumo e tráfico”.
Perguntado sobre o papel coordenativo da SENAD no cenário brasileiro, Garcia reforçou que a Secretaria tem feito o seu papel de chamar os diversos órgãos para o debate, mas que, no dia a dia, cada estrutura tem a sua própria compreensão e práticas de ações, o que dificulta a construção de uma ação coordenada nacional. Uma das ações para a mudança do quadro foi a recente abertura de um edital de pesquisas sobre prevenção, coordenado pela SENAD/MJ. “Precisamos sair do voluntarismo e do simples diga não nas políticas de prevenção”, reforçou ele, médico psiquiatra de formação.
Em uma abordagem sobre a sociedade de controle e as formas institucionais, Roberto Tykanori, Coordenador Nacional de Saúde Mental, Álcool e outras drogas do Ministério da Saúde afirmou que o discurso da ciência tem servido como justificativa para as políticas de controle, quase sempre imposta pela elite sobre a maioria que vive às margens da sociedade. “A polêmica do legaliza ou não pode solucionar somente para o menor lado. Não é a legalização que vai ampliar a democracia, e sim a radicalização da democracia, para que a liberdade seja maior do que o controle”.
Quando questionado sobre a ação efetiva do Ministério da Saúde e as dimensões da rede de Atenção Psicossocial, Tykanori afirmou que “políticas públicas não podem ser medidas pela clínica”. Reforçou a visão do MS de que os Centros de Atenção Psicossocial em Álcool e Drogas (CAPS-AD) não foram pensados para cidades pequenas, sendo todos os temas tratados nas unidades base de CAPS. Destacou ainda o esforço no treinamento e capacitação de cerca de 270 mil Agentes Comunitários de Saúde sobre o tema.
Em nome da Agência Nacional de Vigilância Sanitária, o diretor Ivo Bucaresky explicou que, por parte da Anvisa, nenhuma pesquisa clínica com substâncias é proibida no país. Mas afirmou que de fato há um longo processo entre a pesquisa e as possibilidades de registro de medicamentos que venham a fazer parte da lista de produtos controlados.
Ele destacou ainda que acredita que, cada vez mais a sociedade brasileira encara a maconha como próxima ao tabaco, e que a política de redução de danos vem conseguindo efeitos vitoriosos.
Bucaresky foi taxativo a respeito do canabidiol, regulamentado pela Anvisa recentemente para o uso medicinal. “Eu mesmo autorizo muitas vezes pedidos para facilitar a vida de pessoas com sofrimento. O que impede uma liberação maior é que a maioria dos estudos aponta resultados na base da tentativa e erro, sem a definição de uma dosagem eficaz.”