O plenário do Senado aprovou no passado dia 15 de fevereiro, o projeto de lei que muda as regras da pesquisa de medicamentos no Brasil. Sobre o assunto, a Abrasco tem se posicionado desde 2015, através de uma Nota Pública (leia aqui) encaminhada em outubro de 2015 para Jorge Alves Almeida Venâncio, presidente da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep), onde a Associação se posiciona contrária ao Projeto de Lei do Senado 200/2015, que altera drasticamente a atual regulamentação das pesquisas clínicas envolvendo seres humanos. Além da presidência da Conep, o documento foi enviado para a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e para a Associação Brasileira de Ciências (ABC).
Três dias depois da aprovação, a revista Época abordou o assunto numa reportagem de Marcela Buscato que evidencia as contradições do texto para aprovação – “O projeto divide opiniões porque, apesar de tentar agilizar a aprovação de pesquisas de novas drogas, um problema antigo, retirava proteções dos pacientes que participam dos testes, previstas em resoluções anteriores. A votação, que aconteceu na tarde de hoje depois de um pedido de urgência para a apreciação da matéria – uma surpresa para os grupos que defendem os direitos dos pacientes –, aprovou o texto-base. A matéria agora segue para a Câmara dos Deputados. A Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep), ligada ao Conselho Nacional de Saúde, deixa de ser responsável pelo sistema de revisão e autorização dos protocolos. A função ficará a cargo de um novo órgão, a ser criado sob a Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos, do Ministério da Saúde. Ela coordenará o novo Sistema Nacional de Ética em Pesquisa Clínica com Seres Humanos”, diz o primeiro parágrafo da reportagem publicada no sábado dia 18 de fevereiro.
Através do seu presidente Gastão Wagner, a Abrasco falou sobre o assunto para a revista – “Há muitas razões para nos preocuparmos com o Projeto de Lei nº 200/2015, que regula as pesquisas clínicas, votado no Senado na semana passada: O Brasil já conta com um sistema de revisão ética da pesquisa envolvendo seres humanos, desenvolvido há mais de 20 anos, reconhecido internacionalmente pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), que considera o modelo brasileiro um exemplo a ser seguido.
A Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep) foi criada, em 1996, vinculada ao Conselho Nacional de Saúde, dando oportunidade a um maior controle social. Atualmente, existe uma rede que inclui mais de 600 comitês de ética em pesquisa (CEPs), abrigados em instituições de pesquisa, de ensino e de assistência à saúde. O sistema CEP-Conep garante a adequada proteção aos participantes de pesquisas no Brasil, entre outras coisas, pelo fato de os comitês de ética não poderem ter mais da metade de seus membros pertencentes a uma mesma área ou disciplina, sendo obrigados a contar com a presença de representantes da comunidade. Será um erro dissociar a análise ética do controle social.
Revista Época – O Brasil deve mudar as regras para testar medicamentos?
Apesar de eficaz, o funcionamento administrativo do sistema CEP-Conep tem sido criticado. São destacadas as fragilidades operacionais que dificultam, injustificadamente, a realização de investigações científicas com todo o prejuízo que isso pode causar ao avanço do conhecimento e ao desenvolvimento tecnológico. De um modo geral, esses problemas podem ser atribuídos ao fato de o sistema não ter acompanhado o crescimento da atividade de pesquisa no Brasil ao longo do tempo, adequando sua estrutura técnica e gerencial e investindo na qualificação de seus membros. Em consequência, os pesquisadores estão sofrendo com a lentidão e a burocracia do processo de revisão ética em vigor no Brasil. A superação desses problemas é importante e urgente, inclusive, porque pode vir a servir de pretexto para iniciativas que, independentemente das intenções de seus autores, acabam por negligenciar a proteção dos participantes de pesquisas.
Objetivamente, o projeto de lei do Senado representa uma dessas iniciativas. Negligencia a proteção do participante no momento em que planeja retirar essa competência do âmbito do Conselho Nacional de Saúde. Além disso, permite que, “a critério do patrocinador, poderá ser constituído um comitê independente de monitoramento para assessorar a condução e a avaliação periódica da pesquisa clínica”. Quanto ao acesso ao tratamento pós-estudo, o Senado revisou a redação do projeto de lei, que previa apenas dois anos. Agora, o laboratório deverá fornecer a medicação pós-estudo aos sujeitos participantes até que esteja incorporada e disponível no Sistema Único de Saúde (SUS), o que foi um avanço.
Destaque-se que o projeto de lei limita o controle ético a um grupo restrito de pesquisas clínicas, definidas como aquelas destinadas a “avaliar a ação, a segurança e a eficácia de medicamentos, produtos, técnicas, procedimentos e dispositivos médicos, para fins preventivos, diagnósticos ou terapêuticos”. Em outras palavras, a grande maioria das pesquisas envolvendo seres humanos (inclusive clínicas) não faria parte do sistema de revisão ética.
Vale ainda acrescentar que esse projeto de lei não apresenta nenhuma sugestão de como tornar ágil o processo de avaliação ética, a não ser que se suponha que a “independência” dos CEPs signifique seu funcionamento sem regras ou a aceitação da existência de evidentes conflitos de interesse (quando, por exemplo, os membros do CEP têm vínculos com o patrocinador da pesquisa). O Conselho Nacional de Saúde, a própria Conep e o Ministério da Saúde têm discutido estratégias para superar os problemas de lentidão e rigidez burocrática na apreciação dos protocolos de pesquisa, sem descuidar da proteção aos participantes.
A principal dessas estratégias se refere à descentralização do Sistema CEP-Conep, com a certificação de alguns CEPs, espalhados pelas diversas regiões do país, para apreciar todos os tipos de protocolo de pesquisa com seres humanos. Essa descentralização tem grande potencial de atender à demanda dos pesquisadores por mais agilidade no funcionamento do sistema, sem, com isso, comprometer ou reduzir a proteção dos participantes de pesquisas.
Esse tema é internacionalmente polêmico por diversas razões: a “indústria do ensaio clínico” ligada aos interesses da grande indústria farmacêutica movimenta bilhões de dólares; as queixas nacionais de que a Conep e a Anvisa “reduzem nossa competitividade” é dessa indústria de ensaios, e não da indústria farmacêutica nacional; há um debate internacional, do qual o Brasil participa há décadas, com críticas severas ao quadro criado em benefício dos interesses da grande indústria farmacêutica e em prejuízo dos participantes dos estudos e, especialmente, da transparência dos resultados dos ensaios.
Como ilustração, cabe citar um estudo recentemente publicado no Boletim da Organização Mundial da Saúde, demonstrando a dificuldade de acesso a medicamentos que foram testados na população da América Latina. Dos 18 produtos analisados, 17 custam mais que o salário mínimo mensal em todos os países latino-americanos e, destes, 12 produtos custam pelo menos cinco vezes o salário mínimo mensal. Os autores concluem: “Muitos produtos farmacêuticos testados na América Latina não estão disponíveis e/ou não são acessíveis à maioria da população. Os comitês de revisão ética devem considerar a acessibilidade local e a relevância terapêutica de novos produtos como critérios adicionais para a aprovação”.
O exame do projeto de lei pela Câmara dos Deputados oferece agora a possibilidade de rever o espírito do texto aprovado no Senado Federal, no sentido de garantir a independência da revisão ética das pesquisas com humanos, mantendo-a no âmbito do Conselho Nacional de Saúde e, com isso, garantindo o que é essencial – a segurança dos sujeitos das pesquisas clínicas”.