Professor titular da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, lotado no departamento de Políticas e Instituições de Saúde do Instituto de Medicina Social (IMS/Uerj), Sergio Luis Carrara foi eleito vice-presidente da Associação Brasileira de Antropologia (ABA) na assembleia geral da entidade, realizada no último dia da 31ª Reunião Brasileira de Antropologia, que transcorreu entre 09 e 12 de dezembro, em Brasília (DF).
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Com graduação em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas (1982), mestrado (1987) e doutorado (1995) em Antropologia Social pelo Museu Nacional/Universidade Federal do Rio de Janeiro (MN/UFRJ), Carrara desenvolve pesquisas na área da Antropologia do Corpo e da Saúde, atuando principalmente em temas como sexualidade, gênero, homossexualidade, direitos humanos e violência. É pesquisador do Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos (CLAM/IMS/Uerj) e do Laboratório Integrado em Diversidade Sexual e de Gênero, Políticas e Direitos (LIDIS/UERJ), além de editor da Revista Sexualidade, Saúde e Sociedade. Leia abaixo a entrevista completa:
Abrasco: Quais são as suas expectativas com a presidência da ABA, junto com a professora Maria Filomena Gregori, da Unicamp?
Sergio Carrara: Como sabemos, o contexto político atual é extremamente delicado. O discurso do governo que se instala em Brasília a partir de janeiro baseia-se, ao menos em parte, na crítica à política social que se construiu a partir do chamado processo de redemocratização brasileiro. Tal política tinha como principal objetivo diminuir as profundas desigualdades sociais que marcam nossa sociedade e promover os direitos humanos de grupos socialmente vulneráveis. Seja no âmbito da constituinte, seja no contexto por ela inaugurado, a ABA desempenhou papel importante na construção desse modo de gestão pública das diferenças sociais. Colocando-se ao lado de índios, negros, camponeses, mulheres e pessoas LGBT – interlocutores ou sujeitos privilegiados das pesquisas antropológicas – a ABA buscou contribuir para a própria formulação e defesa de suas demandas. Será sem dúvida um grande desafio acompanhar essa anunciada mudança de rumos e não permitir que ela implique a perda de direitos já conquistados ou o desfiguramento do patrimônio cultural das populações que vivem no território nacional. Em suma, minha expectativa é de muita discussão e luta.
Abrasco: Mesmo não sendo recente, a interface entre Saúde Coletiva e Antropologia é cada vez maior, dado os diversos pontos de contato entre esses campos do conhecimento. A que credita esse embricamento?
Sergio Carrara: Esse embricamento vem de muitas décadas e aconteceu em um âmbito de indagações que recebeu vários nomes – Saúde Pública, Medicina Social, Psiquiatria Social, Higiene Social ou, mais recentemente, Saúde Coletiva. Data de mais de um século a ideia de que os processos de saúde e doença envolvem dimensões sociais e que, para ser efetiva, a educação em saúde deve levar em conta a perspectiva singular (diga-se, cultural) que diferentes grupos sociais mantêm sobre o mundo que os cercam e sobre os males a que estão sujeitos. É, sem dúvida, mais recente a ideia de que o próprio conhecimento médico, como o conhecimento científico em geral, também é perpassado por valores, concepções e representações sociais. Assim, o “social” não apenas diz respeito ao contexto em que ocorrem os processos de saúde e doença, mas participa da própria definição do que é ou não uma doença. Nesses assuntos, a Antropologia sempre procurou levar em conta as perspectivas que os próprios sujeitos mantêm sobre os processos patológicos e, amparada em diferentes abordagens, vem explorando os aspectos políticos frequentemente envolvidos nos processos de medicalização e desmedicaçização. Tome-se, por exemplo, a homossexualidade e a atual luta que, a despeito do que pensam as pessoas LGBT, alguns psicólogos empreendem no sentido de sua repatologização, ao menos em alguns casos.
Abrasco: O tema da 31ª RBA foi “Direitos Humanos e Antropologia em Ação”. Quais foram os sentidos vividos no encontro e o que eles apontam para a nova conjuntura que virá a partir de 2019, com a presidência de Jair Bolsonaro?
Sergio Carrara: Foi um grande encontro, em torno de 1500 pessoas participaram,e os sentidos vividos foram seguramente múltiplos. O horizonte ético dos direitos humanos foi evocado, especialmente no que diz respeito à ação de antropólogas e antropólogos. Além de escrever trabalhos acadêmicos, artigos, teses e dissertações cujo impacto sobre o mundo social não é de se desprezar, eles também colaboram na demarcação de terras indígenas e quilombolas, na definição do que deve ser considerado um patrimônio cultural e na própria crítica ao caráter universalizante e “natural” de certos comportamentos, condutas ou práticas. Nesse sentido, atuam continuamente no sentido a expansão do que deve ser considerado “humano” e, portanto, digno de respeito ou consideração social. Esse processo de humanização, com o respeito à diferença, é um trabalho contínuo que perpassa a sociedade como um todo e o campo científico e, nele, a própria antropologia. A cada encontro refinamos mais nossas sensibilidades sobre os nossos preconceitos.
Abrasco: Como acredita que ABA e Abrasco podem somar forças na luta pela democracia e por um olhar mais humano e compreensivo às alteridades?
Sergio Carrara: O momento é de reforçar redes e, desde a segunda metade do século XX, associações como a ABA e a Abrasco, entre outras associações científicas, têm se mostrado fundamentais para a defesa da democracia. Se poder viver sem constrangimento as diferenças que nos marcam é uma dimensão importante da saúde individual e coletiva, a Abrasco e a Aba continuarão tendo muito o que conversar.