Uma palheta de sentimentos que vão da profunda melancolia a um contagiante êxtase pela liberdade – todas humanas, demasiadamente humanas e riscadas na pele e na alma das pessoas nesse “novo normal”. Quais ficarão e quais serão passageiras? Exercício do pensar abraçado pelo psicanalista Joel Birman; pela historiadora Cecilia Helena de Salles Oliveira; pela produtora cultural Daniele Sampaio, e pelo escritor Julián Fucks no painel “As marcas da pandemia Covid-19 na população serão permanentes?”, realizado na quarta-feira, 29, na programação da Ágora Abrasco. A coordenação foi de Rosana Onocko, vice-presidente da Abrasco e docente da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp.
Decano da psicanálise brasileira, com atividade docente desenvolvida nas universidades federal e do estado do Rio de Janeiro (UFRH e UERJ), Joel Birman deu as chaves psicanalíticas para explicar o que nos assusta está justamente por não podermos ver. “A invisibilidade do vírus conota a incompreensão da comunidade médica e, a lado dessa invisibilidade existe uma ‘indizibilidade’, aquilo que não sabemos como nomeia. Isso gera uma ausência de palavras e de visibilidade que obstrui os canais pelos quais o psiquismo lida com o perigo” destacou Birman.
A experiência da pandemia, para ele, deve ser entendida como um traumatismo primário, por impedir o processo de transformação da angústia em medo e depois em ação. Na sequência, ele distinguiu as diferentes reações provocadas pelos mecanismos do desamparo e do desalento, e destrinchou sintomas que já povoavam a vida contemporânea, como neurose de angústia – mais conhecida como síndrome do pânico – depressão; drogadição; melancolia e compulsões, e que foram agudizados pela pandemia.
Por fim, analisou as tristes e difíceis condições de sepultamento impostas pelo vírus, que impede velórios e despedidas coletivas, o que cala fundo à alma humana. “Quando não se consegue fazer o devido processo de luto cai-se num luto melancólico, violento. Some o cenário de desemprego, que aumenta esse efeito melancolizante e que irá se espalhar na sociedade. Temos muitos mortos não enterrados, e vamos pagar caro por isso como sociedade” concluiu.
Pandemia e memória:
A historiadora Cecilia Helena Lorenzini de Salles Oliveira, professora titular do Museu Paulista da Universidade de São Paulo (MP/USP), apresentou o projeto #MemóriasCovid19. Desenvolvido por pesquisadores de diversas universidades, que visa mapear e identificar os traumas da pandemia por intermédio da memória das pessoas que viveram esse processo.
Nesse primeiro momento, o projeto conta com uma página de cadastro para recebimento de memórias em diversos suportes: texto, fotos, desenhos, vídeos e áudios, além de páginas nas redes sociais para divulgação. Em breve será lançada a plataforma que disponibilizará o conteúdo já recolhido. Até o momento já são 255 arquivos submetidos, a maior parte dos depoimentos de mulheres de 40 e 50 anos, com predomínio do estado de São Paulo.
“O propósito da Plataforma #MemóriasCovid19 é aproximar e reunir redes de memórias que se articulam em torno de circunstâncias comuns para o questionamento do que a pandemia está representando no curso da vida humana” ressalta a docente, destacando que a força criadora e potente que a ressignificação dos sentidos desse período pode provocar, relacionando a ideia de suspensão do tempo provocado pelo período da quarentena com o conceito de horas mortas, de Ecléa Bosi. “A supressão de tempo pela pandemia pode ser compreendida como horas mortas? Talvez essas horas venham entalhar como tatuagem nossas memórias. Narrar nossas experiências significa perdê-las, mas encarná-las em outras plataformas” finalizou a historiadora.
Por uma outra cultura de valores:
Pensar a pandemia como um dínamo para o surgimento de outros valores culturais foi a estratégia adotada por Daniele Sampaio, produtora cultura e gestora da SIM! Cultura, espaço e empresa de produção cultural em Campinas (SP). Apesar de não ser possível ainda ter uma totalidade das mudanças, elas já estão em curso nas ruas e nas audiências dos produtos culturais.
“Se tudo está em jogo, é possível então mudar também as regras” ressaltou Daniele, comentando a pandemia particular da conjuntura brasileira, marcada por desigualdade social, racismo estrutural e naturalização de práticas genocidas. Para ela, ao se negar e não garantir uma renda básica nem a fila única de leitos, a sociedade brasileira reiterou valores perversos, arraigados historicamente e que ganharam reforço numa conjuntura marcada por discursos de ódio e práticas necropolíticas. Esse cenário ressalta a condição relapsa da memória social brasileira. “O que podemos aprender com a história e o que poderíamos ter aprendido com a pandemia? Não fizemos a lição de casa, e lidamos como se essa fosse nossa primeira experiência coletiva sanitária traumática, e não é!”
Para a mudança desse cenário, mulheres, negros e negras, pessoas trans precisam ocupar espaços de poder e decisão, tirando da mão de quem está interessado em manter o status quo. “Se estamos vivas e vivos temos de agradecer diariamente, e saber que não é possível fazer sozinhos” concluiu a produtora cultural.
A indeterminação como posicionamento político:
Julián Fucks tomou a dúvida e a incerteza como caminho, conduzindo uma reflexão a partir de textos que tem publicado em sua coluna no Portal UOL e em reflexões da crítica literária e cultural. “A pergunta tão afirmativa desse painel nos insta a dizer que sim, que teremos marcas permanentes. No entanto, desde o início do processo pandêmico, meu sentimento que há precipitação no olhar ao futuro, que abre um novo tempo, e porque ele ainda não se abriu” disparou.
Na percepção do escritor, a experiência da quarentena trouxe como experiência uma falência do tempo, sentida de múltiplas formas: um inchaço do tempo presente; um distanciamento do passado, fazendo fatos de 4 meses atrás parecerem longínquos; e um cancelamento do futuro, “como se tudo até então perde-se pertinência, incorrem em irrelevância, como se tudo estivesse sendo cancelado” marcou o escritor, indicando “cancelamento” como uma das fortes candidatas à palavra do ano.
Junto à dor das perdas vem a ideia de punição coletiva, seja a de cunho religioso, como demonstração da ira divina pelas ações humanas, seja de senso político, tanto negativo, pintando o vírus como um instrumento de controle das populações, como positivo, a ideia de que somos todos iguais ao passar por essa experiência e que, ao fim, um mundo com maior compreensão social fosse algo dado. Para ele, quaisquer desses cenários não condizem com o momento.
“Precisamos construir sentidos, e não os tomar prontos, simplesmente nos colocando num posto de observação. Essa interpretação não pode vir dissociada de um desejo. Precisamos transformar a pandemia em outra coisa” disse Julián Fucks, que encerrou aprofundando a indeterminação como posicionamento político. “O pós-pandêmico ainda não está dado. Como podemos saber se a vida será totalmente nua, ou um momento de êxtase, uma libertação de tudo? Estamos questionando coisas enquanto o poder desmorona aos nossos olhos”.
Ao final do rico painel, Rosana Onocko encerrou com uma ideia síntese que colocou a sessão em diálogo com o conjunto das demais transmissões da Ágora Abrasco dos quatro últimos meses. “A saúde coletiva é por definição interdisciplinar. Que lindo pensar o tempo, os sintomas e valores e trazer essas questões para a demarché da saúde, reforçando que não há espaço para se pensar o humano fora da sociedade” completou a vice-presidente da Abrasco.
Assista à sessão na íntegra: