A abrasquiana Sonia Fleury participou do Seminário Internacional Experiências em Previdência Social, na semana passada (4/06), na Câmara dos Deputados. O evento encerrou a sequência de audiências públicas promovidas pela Comissão Especial que analisa a PEC 6/19, em tramitação no congresso. Leia registro do Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz:
Para aqueles que consideram a Constituição de 1988 “uma aberração”, no que diz respeito aos direitos sociais ali garantidos, a pesquisadora Sonia Fleury, do Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz, é taxativa ao defender justamente o contrário, em um cenário mundial de mudança nas relações de produção e de trabalho, com empregos formais cada vez mais escassos: “Neste momento, nada mais atual do que a seguridade social tal como está formulada na Constituição”, afirma. “As aposentadorias e pensões, quanto menos vinculadas a contribuições pretéritas, aos salários de trabalhadores, mais justas serão”, diz a pesquisadora.
Sonia abriu sua fala lembrando que frequentou a Câmara durante os trabalhos da Assembleia Nacional Constituinte, em 1987, como assessora do então relator do texto relativo à Ordem Social, Almir Gabriel, e fez um pequeno histórico sobre os três modelos de reforma da seguridade social adotados na América Latina a partir da década de 1980. Pelo modelo chileno, de caráter dual, explicou Sonia, os pobres ficaram aos cuidados do Estado e aqueles com capacidade de capitalizar foram encaminhados ao mercado, no que diz respeito tanto à previdência quanto à saúde. “O modelo dualizou a sociedade, dividida entre os pobres e os que têm capacidade contributiva”.
O outro modelo foi o da Colômbia, dos anos 1990, no qual se buscou um sistema plural, com seguradoras privadas, mas com contribuição solidária do Estado para um aumento da cobertura. “Embora fosse um modelo mais solidário e menos iníquo do que o chileno, também tinha problemas, porque dependia da contribuição dos trabalhadores para cobrir os que não tinham capacidade contributiva”, destacou. “No momento em que ocorre uma crise econômica na Colômbia, esse modelo entra também em crise, porque não tem capacidade de incluir os que estão fora do mercado de trabalho a partir do próprio trabalho”.
Por fim, conforme apresentou a pesquisadora, entre um modelo e outro, situa-se o brasileiro, de caráter universal, não financiado exclusivamente pela contribuição dos trabalhadores, baseando-se, sim, em um financiamento solidário, desvinculando as contribuições dos benefícios. “É isso que distingue a seguridade social e o que reza nossa Constituição. As contribuições são importantes, mas não vêm só do trabalho, e sim da sociedade como um todo. A sociedade define um novo patamar civilizatório e diz: abaixo disso não queremos; queremos que todos tenham um mínimo de dignidade e vamos nos solidarizar por esse sistema”, explicou Sonia, considerando o sistema de saúde brasileiro “extremamente inovador”, garantindo direitos aos que podem e aos que não podem contribuir.
Até então, destacou, as constituições não tinham o capítulo da Ordem Social; os direitos sociais eram apenas daqueles inseridos no mercado de trabalho formal, como se os demais não pudessem ter direitos. “Desvinculando-se o direito da condição de trabalho, o direito passa a ser da cidadania, não apenas do trabalhador. Uma política social não é só um arranjo institucional, financeiro ou legal. É um projeto societário”, definiu, explicando que, para alcançar essa proposta, foi criado um conjunto de mecanismos de diversificação das fontes de financiamento [tal como expressam os artigos 194 e 195 da Constituição], de forma que a seguridade social não ficasse vulnerável a crises econômicas.
Tomando como base o artigo Capitalização: segurança para o mercado financeiro, insegurança para os trabalhadores, que escreveu com a pesquisadora Virgínia Fava, Sonia definiu como “exótico” o processo da PEC 6/2019. “É um processo que desconstitucionaliza direitos, desconstitucionaliza aquilo que é seguro e foi acordado depois de amplamente discutido na Constituinte com todos os atores, e, ao mesmo tempo, constitucionaliza um novo sistema que não se sabe qual é. Ninguém sabe que desenho terá o modelo de capitalização; se é alternativo ou substitutivo, com contribuição do empregador ou sem essa contribuição”.
Sonia observou que a proposta da Reforma da Previdência em tramitação, ao vincular salário a contribuição vai na contramão das demandas para se enfrentar um mundo em transformação. “É uma reforma extremamente atrasada”, considerou. “Com entrada da indústria 4.0, que vai automatizar e acabar com várias profissões, haverá trabalho, mas sem inserção formal no emprego. O que essa reforma prepara para essa sociedade que se transforma? Nada. E também não dialoga com nossos problemas estruturais, como a informalidade enorme, a desigualdade enorme, gênero e raça. O que essa reforma faz para a inclusão social, para diminuir a pobreza e incluir os que estão na informalidade? Nada”.
O atraso está também no fato de as experiências com propostas parecidas terem sido ignoradas pelo governo, como destaca a pesquisadora, referindo-se a estudo a OIT, mostrando que de 30 países que adotaram o sistema de capitalização, desde 2008, 18 já voltaram atrás. “Por que só 30 e por que vários voltaram atrás? É atrasado um país que não olha para o futuro e não considera o que já aconteceu no mundo. Simplesmente, não deu certo”.
A pesquisadora lembra, ainda, que a desconstitucionalização abrange o salário mínimo, até o momento tomado como patamar inicial para qualquer benefício. “Constar da Constituição que nenhum benefício seria menor que o salário mínimo foi enorme avanço”, observa Sonia. Pela PEC da Reforma da Previdência, esse patamar é desfeito. “Os benefícios estarão cada vez mais deprimidos. O objetivo final vai ficando cada vez mais claro: uma pensão mínima universal bastante baixa, que, aos poucos vai sendo substituída por um sistema de capitalização. É um sistema que vai repassar recursos dos trabalhadores a instituições financeiras, em que estas terão a segurança de que irão receber os depósitos das contribuições e o trabalhador terá a insegurança quanto a como ficará sua vida. Esse é o desenho final do projeto”.
Citando as convenções 102, 128 e 202 da Organização Internacional do Trabalho, Sonia aponta que a proposta do governo não atende a quase todos os princípios de uma boa reforma. “Diálogo social, não houve; objetivo de universalizar a cobertura, não é o que está sendo feito; equidade de tratamento, não há; solidariedade na distribuição de renda, muito menos; participação social foi eliminada”, enumerou. Somente o item sustentabilidade financeira atuarial parece ter sido contemplado, mas “colocado como princípio único e de forma duvidosa”, como define.
De acordo com Sonia, o projeto é autoritário, eliminou qualquer possibilidade de diálogo, não discutiu o diagnóstico para, então, discutir soluções. “Dizer que é a previdência social que está deteriorando as finanças públicas e não que a economia é que está deteriorando as finanças da previdência é algo com que a sociedade não concorda”, afirmou, indagando se os parlamentares ali presentes estão dispostos a assinar um “cheque em branco”, atribuindo a um superministro a responsabilidade de definir a capitalização que vem aí. “Vamos ser um Chile amanhã, onde, como mostram os estudiosos muito claramente, os trabalhadores contribuem como classe média e se aposentam como pobres”.
Assista à gravação do evento: