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SUS: 30 anos de resistência e contra-hegemonia

Paulo Capel Narvai *

Mais um natimorto“, ouvi de um colega quando foi anunciada a criação do Sistema Único de Saúde (SUS) pela Assembleia Nacional Constituinte naquela longínqua terça-feira de 1988. Em 17 de maio, há 30 anos, na 267 ª Sessão da Assembleia, os constituintes de 1988 tomaram a decisão de criar o SUS. Um acordo histórico com o ‘centrão’, um bloco parlamentar conservador que hegemonizou a Assembleia Constituinte, viabilizou politicamente a proposta e o sistema foi criado. Foram 472 votos favoráveis, 9 contrários e 6 abstenções 1.

Mas esta vitória esmagadora, considerando os números da votação, é uma aparência cuja essência revela outra coisa. O “natimorto” a que se referia meu colega tinha origem no modo como a criação do SUS havia sido resolvida entre deputados federais e senadores constituintes, e recuperava o qualificativo empregado por Carlos Gentile de Mello para se referir ao PREV-SAÚDE – uma tentativa de, ainda no regime da ditadura civil-militar imposta ao País em 1964, juntar recursos dos ministérios da Previdência e da Saúde para criar um Programa Nacional de Serviços Básicos de Saúde, proposto em 1980 pela 7ª Conferência Nacional de Saúde (CNS)2. Fustigado pelo setor privado de saúde desde a designação de um grupo interministerial com essa finalidade, o PREV-SAÚDE não resistiu: deu em nada após conhecer pelo menos três versões que chegaram ao público. “Foi um natimorto“, disse Gentile.

Alma-Ata e Prev-Saúde
O PREV-SAÚDE vinha influenciado pela Conferência Internacional sobre Cuidados Primários de Saúde, que a Organização Mundial da Saúde (OMS) realizara em Alma-Ata, na ex-União Soviética, em setembro de 1978, sob a presidência de Halfdan Mahler, seu diretor geral. Aquela conferência indicou aos países que se empenhassem na construção de sistemas universais de saúde que tivessem base em Atenção Primária à Saúde (APS) bem organizada. Eram tempos em que a OMS era menos vulnerável à pressão que os mercados exercem sobre a ONU e as organizações a ela vinculadas. No Brasil, buscava-se avançar nessa direção, mas o setor privado, já à época resistia à ideia de um sistema universal de saúde por aqui, pois isso atrapalharia seus negócios (“é estatizante”, acusavam)3. E alguns setores à esquerda no espectro político também se opunham ao PREV-SAÚDE, pois consideravam “reformista” (e, portanto, não revolucionária) a proposta aprovada em Alma-Ata 4.

Alguns anos depois, em 1983, em palestra na Fundação Getúlio Vargas sobre “reformas racionalizadoras” de sistemas de saúde em países latino-americanos, no contexto da crise do capitalismo contemporâneo, Sérgio Arouca diria que tais reformas eram parte do leque de opções de políticas sociais desses países e, estando presente Carlos Gentile de Mello, ironizou a iniciativa do PREV-SAÚDE (“Parece que o Dr. Gentile tinha, inclusive, um museu de propostas elaboradas e não implementadas […] esse museu deve estar num crescimento fantástico”), reclamando de “boas propostas” que insistiam em não sair do papel 5.

Para o meu colega, porém, a perspectiva de o SUS vir a ser “mais um natimorto” nada tinha a ver com o tal “museu de propostas do Dr. Gentile”, mas derivava de um ceticismo com razão de ser: para ele, o ‘centrão’ havia cedido no SUS para “ganhar em outro lugar” e, por isso mesmo, sua base social, conservadora e avessa a gratuidades, “não tinha e nunca teria nenhum compromisso com o SUS“. Pior: dentre os 9 votos contrários não estavam apenas fundamentalistas anti-Estado, de extrema-direita, mas parlamentares de esquerda, integrantes da bancada do PCdoB. Esses votos do PCdoB contra o SUS não significavam oposição aos princípios do sistema que se buscava criar, mas decorriam de circunstâncias daquela conjuntura, em que o partido buscava demarcar campo com outras forças de esquerda, notadamente o PCB e o PT. Faço justiça ao PCdoB registrando que o partido apresentou uma proposta de fixar 13% dos orçamentos da União, Estados e Municípios, ao financiamento da saúde. Mas José Serra encaminhou contra essa proposta, que não foi aprovada, como é amplamente conhecido. Mudou a conjuntura e desde então o PCdoB, afastando-se da visão que via na APS uma proposta apenas ‘reformista’, tem sido uma das forças político-partidárias mais empenhadas na defesa e construção do SUS, tal como delineado na Constituição de 1988. O ‘centrão’, por outro lado, rapidamente se reorganizou na saúde e o SUS não ficou um dia sequer sem ser atacado, de um modo ou de outro, pelos interesses que essa bancada defendia – e atualmente, com novos representantes e sem esse apelido, segue defendendo. Eu os tenho denominado de SUScidas, um neologismo autoexplicativo.

SUScidas
Nos dias atuais, além de dedicar especial energia ao estrangulamento financeiro do sistema, representado pela aprovação da Emenda Constitucional 95/2016, que congela investimentos em saúde e outros setores sociais por 20 anos, os parlamentares SUScidas estão mais interessados em prestar serviços às empresas que fazem negócios com “saúde”, vendendo “planos” para empresas que utilizam tais contratos para obter vantagens fiscais, via imposto de renda. Segundo os economistas Carlos Ocké (IPEA) e Artur Fernandes (RF) o volume dessas renúncias fiscais teria atingido a cifra de 16,2 bilhões de reais em 2015. Acrescida de outras isenções, como as previdenciárias e as filantrópicas, o volume total alcançou 32,3 bilhões de reais naquele ano. Os pesquisadores fizeram também as contas do volume de recursos que jamais entrou no caixa do governo pela via fiscal, no período de 2003 a 2015: R$ 331,5 bilhões 6. Em troca do apoio à manutenção dessa sangria fiscal, as empresas do setor, notadamente as ligadas aos mal denominados “planos de saúde” são generosas com deputados, senadores e seus partidos políticos: conforme estudo conduzido pelos professores Mário Scheffer (USP) e Lígia Bahia (UFRJ), “nas eleições de 2010, as empresas de planos de saúde destinaram R$ 11,8 milhões em doações oficiais para as campanhas de 153 candidatos a cargos eletivos, o que contribuiu para a eleição de 38 deputados federais, 26 deputados estaduais, 5 senadores, além de 5 governadores e da presidente da República” 7. Além disso, em suas bases, deputados e senadores SUScidas vêm se transformando também em agentes de captação e desvio de recursos públicos destinados originariamente ao SUS para irrigar contas bancárias de empresas de propriedade de particulares, equivocadamente denominadas de Organizações Sociais de Saúde (OSS), que vêm assumindo a prestação de serviços de saúde, para supostamente “melhorar a eficiência do sistema, emperrado pela burocracia estatal”. Mas as OSS se constituem em verdadeiro capítulo à parte na história contemporânea do SUS. Para não me alongar, basta mencionar o farto noticiário sobre elas em páginas policiais de jornais populares, narrando “rombos”, “desvios” e “fraudes” de toda ordem. Em 22/2/2013 a revista Época informava que uma auditoria havia detectado “desvios de R$ 23,5 milhões em cinco hospitais do Rio”. Segundo A Crítica, de Manaus, de 20/9/2016, “R$ 110 milhões foram desviados do SUS no Amazonas”. Em nossos dias, OSS são negociadas no mercado como se fossem empresas quaisquer. Algumas exceções, apenas confirmam a regra dessa forma de mercantilização da saúde. O esfacelamento da gestão e a fragmentação do SUS, via terceirizações, apenas pavimenta o caminho para o que está sendo imposto: a transferência da base de serviços do SUS (atenção básica) para o setor privado empresarial, conforme propõe a Federação Brasileira de Planos de Saúde (FEBRAPLAN), a mais nova SUScida do cenário brasileiro da saúde, pois trata-se da entidade de interesses privados criada mais recentemente. Tendo em vista o conflito de interesses entre o SUS e as operadoras de “planos” de “saúde” (entre aspas mesmo, pois não são nem planos nem muito menos de saúde), diferentes atores têm vindo a público anunciar a necessidade de “colocar ordem na casa” e produzir um rearranjo no sistema, agora denominado de “nacional” de saúde, capaz de harmonizar os interesses do capital com o SUS.

Mas o capital não quer se ater a acumular e se reproduzir apenas no setor industrial de produção de equipamentos, materiais e medicamentos e na área hospitalar e laboratorial. Além de dominar a média e a alta complexidade, ambiciona, famélico, abocanhar também a atenção básica à saúde e até mesmo a própria gestão do SUS. É o que se depreende do documento ‘Proposta para o sistema de saúde brasileiro8, divulgado neste ano pela articulação empresarial conhecida como ‘Coalizão Saúde’, que reúne diferentes empresas sociedades anônimas (S.A.) que atuam no setor saúde, com o objetivo de subordinar ainda mais o SUS aos ditames do mercado. O elenco de suas propostas preconiza, dentre outras, “fortalecer e ampliar as parcerias público-privadas”, “desburocratizar o sistema regulatório”, aumentar a participação “do setor privado na gestão da saúde e criar mecanismos para melhorar a eficiência do gasto público”, mudar o “modelo de remuneração da saúde no Brasil, alinhando-o com outros modelos internacionais” e, claro, aumentar o investimento público no setor “especialmente por parte do Governo Federal”. Como as ações dessas empresas S.A. são negociadas em diferentes bolsas de valores ao redor do mundo, não é difícil concluir que seus operadores, instalados em confortáveis salas de empresas de investimentos, jogam diariamente, apostando em bolsas de valores, animadas por essa espécie de cassino da morte, da dor e do sofrimento em que está transformado o setor de saúde brasileiro.

Ocultamento do SUS
A esse respeito é preciso não tergiversar e afirmar com todas as letras: o sucesso empresarial na área de cuidados de saúde corresponde à falência do projeto do SUS e ao reconhecimento tácito de que tais cuidados são mercadorias. Ao contrário, o sucesso do SUS, tal como delineado em 1988, deve corresponder à reafirmação da saúde como direito e isto impõe a necessidade de regulamentar fortemente e submeter a ação dessas empresas ao interesse público na saúde. Esta exigência, elementar, decorre do fato de que a simples existência de um setor privado empresarial, em busca de lucro, constrange – e muito – a organização e funcionamento do SUS. Não é possível, como demonstram as experiências do Reino Unido e outros países que têm sistemas universais de saúde, a convivência harmoniosa entre concepções antípodas da saúde (ou direito ou mercadoria) e da forma de produzir cuidados de saúde (gestão de um direito social ou gestão de uma mercadoria). São como água e óleo, não se podem misturar. Sua coexistência implica subordinação inexorável das instituições públicas aos interesses comerciais privados. Para não me alongar, justifico com apenas dois exemplos: 1) projetos de lei que buscam criar o estágio civil (obrigatório ou não) para egressos de cursos de graduação em saúde nunca prosperam no Congresso Nacional. É que a simples existência desse estágio, com o requisito de que os egressos dessas graduações permaneçam por um ou mais anos em municípios do interior do País, ou áreas críticas de regiões metropolitanas, exige que tais municípios disponham de um adequado sistema de saúde, capaz de programar adequadamente as permanências desses egressos, recebendo-os, treinando-os, organizando o seu processo de trabalho e integrando-os(as) à dinâmica do sistema municipal de saúde. Ou seja, trata-se de uma iniciativa estruturante e organizadora do SUS pelo Brasil afora. Isto é o que basta para que tais propostas, reconhecidamente “bem-intencionadas” e que surgem sempre com amplo e generalizado apoio no parlamento e na sociedade, não prosperem no Congresso, barradas por parlamentares serviçais de operadoras de planos, que não querem ver seus negócios prejudicados; 2) não obstante os notáveis serviços que presta à saúde da população, o SUS é atacado de modo infame pela esmagadora maioria dos meios de comunicação privados, os quais recebem polpudas verbas publicitárias de empresas que vendem cuidados de saúde. Assim, perde a guerra da comunicação, sendo sistematicamente desqualificado no imaginário social. Esse trabalho de desqualificação inclui o ocultamento do SUS, tornado opaco à sociedade. Sobre isto, basta ver como o símbolo do SUS “desaparece misteriosamente” nos serviços de saúde. Ele não é visto nas fachadas, nas placas, nas vestimentas dos profissionais, nas ambulâncias, na documentação física e digital. Ocultam-no diariamente da população. Não é por acaso. É parte da guerra travada pelo SUS contra a mercantilização da saúde 9. Faça, leitor(a), o teste: tente encontrar o símbolo do SUS nos lugares que mencionei, nas unidades vinculadas ao SUS com as quais você tenha contato.

Subfinanciado cronicamente e com recursos vampirizados, o SUS aos 30 anos está transformado em pálida caricatura de si mesmo, quando comparado com o delineamento que lhe deram os constituintes de 1988. Não foi “um natimorto”, mas a criança cresceu com dificuldades e vem tendo importantes problemas de desenvolvimento. Na idade adulta, debilitado em três décadas de heroica luta contra-hegemônica, virou alvo frágil de SUScidas. Cambaleia, trôpego, enquanto se fortalecem as operadoras privadas de “planos”, que não lhe dão trégua. É significativo, a esse respeito, que a norte-americana United Health, que comprou a Amil por R$ 10 bilhões, tenha anunciado recentemente investimento de alguns bilhões de reais na criação de uma rede de “clínicas médicas populares”. Avança, voraz, a mercantilização da saúde. Avança também, no Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (IDEC) o índice de reclamações de “consumidores” maltratados por empresas cujos “planos” são verdadeiros supercampeões de impopularidade. Conforme a Agência Brasil (12/3/2018), os planos de saúde lideraram, em 2017 pelo terceiro ano consecutivo, a lista de reclamações feitas por consumidores ao IDEC. Essas queixas corresponderam a 23% do total. Embora a maior parte das reclamações tenha se referido a reajustes abusivos nos valores dos planos, as negativas de cobertura e a falta de informações compõem o elenco de queixas.

SUS ou CUS?
Nesse cenário, ao invés de reafirmar a importância de sistemas universais de saúde, e do papel que os Estados nacionais têm de assegurar o direito à saúde aos seus cidadãos conforme o compromisso que consta na Constituição que a instituiu, a OMS, seguindo orientação do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional, vem argumentando que tais sistemas “são muito caros” e que não seriam sustentáveis no mundo atual e no futuro. Propõe, então, que os países busquem assegurar a todos o que vem sendo denominado de “cobertura universal em saúde” (CUS). No momento está em curso no Brasil uma consulta pública sobre o assunto. Haver uma consulta assim parece bom, mas é armadilha. Querem que, no Brasil, onde lutamos muito pela continuidade do nosso “sistema universal de saúde”, seja legitimada a posição de apoio à CUS. Parecem querer nos fazer crer que sistemas universais e CUS são a mesma coisa. Mas não são. Para a CUS, a saúde da população decorre do mero acesso a cuidados de saúde. Sabemos que isto não tem base científica. Ademais, acesso a cuidados de saúde significa acesso aos “planos de saúde”. Mas para nós, SUSistas, saúde é muito, muito, muito mais do que o simples acesso a serviços de saúde, pois resulta dos modos como as sociedades organizam a produção de bens e serviços e os distribui. E também (mas não apenas…) do acesso a cuidados de saúde sustentáveis, derivados das necessidades das pessoas e não de ‘necessidades’ produzidas artificialmente por quem faz negócios com essas necessidades. CUS? Não, muito obrigado, deveríamos responder.

SUSistas
Há, felizmente, resistências às agressões ao SUS. Elas vêm de SUSistas (aqueles que defendem o SUS contra os SUScidas) de vários setores sociais, mas sobretudo da base do SUS, dos trabalhadores que dão vida ao sistema, no dia a dia. Não há dados precisos sobre o número de profissionais de saúde que trabalham direta ou indiretamente para o SUS, mas estima-se que esteja em torno de 2 milhões. São esses trabalhadores que defendem os serviços públicos do SUS das agressões que sofrem diariamente. Defendem seus postos de trabalho, decerto, mas não apenas isto. A maioria quer, efetivamente, produzir os cuidados de saúde de que necessita a população, comprometendo-se com a concretização da saúde como direito de cidadania. Mas vive um cenário laboral desolador, de predomínio de más condições de trabalho, precarização e desvalorização profissional, sucateamento dos serviços, baixos salários e loteamento político-partidário de cargos de direção. Por isso o SUS é contra-hegemônico e seu projeto desagrada aos que se identificam e se beneficiam com o status quo. Para David Capistrano Filho “nosso trabalho é uma guerra contra as consequências, no campo da saúde, da miséria, da fome, da ignorância, dos ambientes de trabalho insalubres e inseguros, de toda uma forma de organização social violenta, cruel, geradora de desigualdades brutais. Numa palavra, nós travamos uma guerra em defesa da saúde e da vida, contra o rastro de sofrimento e de morte com o qual o capitalismo brasileiro marca a existência de milhões de pessoas” (10). Para travar esta guerra, criamos e defendemos o SUS.

Muitas contradições marcam o SUS e uma delas, a meu juízo a principal, é o fato de que 30 anos após sua criação, os profissionais não contam com uma Carreira estruturada, de abrangência nacional. Tenho dito que embora o SUS seja responsável por feitos notáveis na saúde pública brasileira contemporânea, os profissionais responsáveis por esses feitos não se sentem “trabalhadores do SUS”, mas “funcionários da Prefeitura”, “servidores do governo do Estado”, “empregados da OSS tal”, uma vez que são estes que lhes pagam os vencimentos. Não há, portanto, identificação funcional com o SUS. Esses profissionais de saúde “vestem outra camisa” e não a “camisa do SUS”, conforme se diz. Ninguém (com exceções, claro) se sente “do SUS” e, portanto, os rumos e o destino do sistema parecem não lhes dizer respeito, não lhes significam muita coisa – para muitos não significam efetivamente nada 11.

Esgotamento da Municipalização
O processo de municipalização da saúde que representou enorme avanço democrático e organizativo nas décadas finais do século passado encontra-se hoje bastante enfraquecido politicamente, uma vez que cria crescentes entraves à necessária regionalização da saúde e acelera sua privatização, via OSS e outras alternativas similares, quando municípios renunciam à gestão dos seus próprios sistemas, que constituem a base organizacional do SUS. É preciso buscar soluções estruturais para superar essas dificuldades. Tenho proposto que deveríamos ousar mais e enfrentar o poder local privatista, barrando as pretensões de prefeitos arrogantes e autoritários que, interpretando erroneamente a autonomia desse ente federativo como equivalente a soberania do Município em relação ao SUS, frequentemente ignorando o Conselho Municipal de Saúde, extrapolam sua competência nessa matéria. Uma alternativa seria impedir legalmente a privatização, por inconstitucional (Art.199;2 e caput) uma vez que se a Carta Magna assegura ser “livre à iniciativa privada” a “assistência à saúde”, isto não se estende à gestão de serviços e sistemas de saúde, sendo esta uma prerrogativa do SUS. Assim, municípios que reconhecidamente não se sintam em condições de fazer a gestão do SUS no seu território, porque não têm condições de pagar os salários dos profissionais, como insistentemente se argumenta para justificar a privatização, deveriam se desfazer das suas responsabilidades e abrir mão de receber da União os recursos destinados aos trabalhadores da saúde, que financiam o SUS no seu âmbito. Com esses recursos o governo federal poderia criar e financiar uma Carreira Interfederativa, Única, Nacional do SUS, à qual qualquer município em condições similares poderia aderir, abrindo mão de fazer a gestão dos Trabalhadores do SUS. Nesse modelo caberia ao Município apenas gerenciar o trabalho das equipes multiprofissionais no seu território e fazer a gestão de equipamentos, materiais, instrumentos e rede física. A esse respeito cabe assinalar que Conselhos de Saúde podem aprovar Resolução recomendando que Estados e Municípios adiram à Carreira-SUS e que a Secretaria Municipal de Saúde gerencie os recursos de saúde no seu território, integrando-os à respectiva Região de Saúde, uma vez que, conforme dispõe a Lei 8.142/90 (Art. 1º, parágrafo 2º) compete ao Conselho de Saúde atuar “na formulação de estratégias e no controle da execução da política de saúde na instância correspondente, inclusive nos aspectos econômicos e financeiros”, ressalvando que tais decisões “serão homologadas pelo chefe do poder legalmente constituído em cada esfera do governo” 12.

Alternativas à Privatização
Esta opção tem ainda a vantagem de desonerar o orçamento do Município, atenuando os efeitos sobre ele produzidos pela Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar nº 101/2000, de 4/5/2000) 13. Esse mecanismo conteria, de imediato, pelo menos parte do desvio do dinheiro público do SUS que, ao invés de pagar o salário dos Trabalhadores do SUS, indo para o contracheque dos profissionais, tem simplesmente evaporado, conforme notícias envolvendo toda a sorte de quadrilhas que vêm se especializando em roubar o dinheiro do SUS, valendo-se das fragilidades dos controles administrativos e também da falta de transparência sobre os orçamentos públicos, notadamente em municípios. Esta alternativa revela que os entes federativos têm opções e que não precisam se render, como vêm fazendo, ao pensamento único neoliberal de privatizar a gestão de um direito social, como é a saúde. Registre-se, a propósito, que o Projeto de Iniciativa Popular apresentado à Constituinte em 12/8/1987 propondo a criação do SUS previa a criação de carreiras multiprofissionais do sistema, o que foi reiterado desde então em todas as Conferências Nacionais de Saúde.
Ouço, aqui e ali, que “o SUS acabou”. O fantasma do natimorto nos ronda. Discordo. O SUS vive. Porém, para seguir em frente e se consolidar como a mais importante conquista da cidadania que veio com a Constituição de 1988 o SUS precisa romper as amarras do subfinanciamento, livrar-se das terceirizações que lhe vampirizam os recursos, inverter o modelo de atenção ainda predominante no Brasil, baseado em hospitais, colocando o centro da sua atuação na atenção primária à saúde e ousar criar uma carreira nacional do SUS. São desafios gigantescos, é certo, mas não maiores nem mais ousados do que o desafio da sua criação 30 anos atrás.

* Paulo Capel Narvai é cirurgião-dentista sanitarista; professor titular da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (FSP/USP) e integrante do Grupo Temático de Saúde Bucal Coletiva (GTSB/Abrasco). Autor de ‘Odontologia e Saúde Bucal Coletiva’ (Ed.Santos) e de ‘Saúde Bucal no Brasil: Muito Além do Céu da Boca’ (Ed.Fiocruz), dentre outras obras científicas.

REFERÊNCIAS

  1. Brasil. Assembleia Nacional Constituinte. Diário da Assem Nac Constituinte. 1988;2(244):10415–93.
  2. Mello CG de. Prev-Saúde natimorto. Folha de S Paulo. 1980 Oct 6;3.
  3. Mello CG de. Inamps versus Prev-Saúde. Folha de S Paulo. 1981 Mar 9;3.
  4. Tornero N. Assistência Sanitária Primária: uma proposta reformista. Princípios. 1986;6(13):43–50.
  5. Arouca AS da S. Tendências da assistência médica na América Latina. Rev Adm Pública. 1983;17(3):8–21.
  6. Carlos Octávio Ocké-Reis; Artur Monteiro Prado Fernandes. Descrição do Gasto Tributário em Saúde – 2003 a 2015. Nota Técnica [Internet]. 2018;Abril(48):1–18. Available from: http://www.ipea.gov.br
  7. Scheffer M, Bahia L. O financiamento de campanhas pelos planos e seguros de saúde nas eleições de 2010. Saúde em Debate. 2013;37(96):96–103.
  8. Saúde C. Proposta para o sistema de saúde brasileiro. s.l.p.: Banca Comunicação e Tecnologia; p. 1–28.
  9. Narvai PC. Ocultamento do SUS e guerra simbólica do capital contra a saúde pública. In: Anais do 11o Congresso Brasileiro de Saúde Coletiva [Internet]. Goiânia: Abrasco; 2015. Available from: http://www.saudecoletiva.org.br/2015/anais/index_int.php?id_trabalho=171&ano=&ev=#menuanais
  10. Capistrano-Filho D. Da saúde e das cidades. São Paulo: Hucitec; 1993. 155 p.
  11. Narvai PC. Por uma carreira interfederativa, única e nacional do SUS [Internet]. Rio de Janeiro: Abrasco; 2017. Available from: https://abrasco.org.br/noticias/opiniao/por-uma-carreira-interfederativa-unica-e-nacional-do-sus/31184/
  12. Brasil. Lei no 8.142, de 28 de dezembro de 1990. 1990.
  13. Brasil. Lei Complementar 101/2000. Diário Of da União [Internet]. 2000;(5 maio):1. Available from: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lcp/lcp101.htm

 

 

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