A história anda aos saltos e nunca de maneira linear. Visto desde o macabro cenário da pandemia no Brasil de 2020, do topo da montanha de mais de 140 mil mortos, parece quase impossível que houvesse, em 1990, acúmulos políticos para fazer realidade a sanção da lei 8.080, colocando o projeto constitucional do SUS em pé.
O Brasil tornava-se o primeiro e único país sul-americano a oferecer ao seu povo um sistema de saúde de caráter universal, gratuito e equitativo. Trinta anos de avanços, mas também de lutas e derrotas. O Brasil de 2020 gasta menos dinheiro público per capita em saúde do que qualquer outro país com sistema único no mundo. Avançou-se no acesso — na expansão da cobertura de APS e Saúde Mental, por exemplo mas persistem as iniquidades regionais, centro-periferia e raciais. Há importantes gargalos em algumas especialidades e baixa efetividade em outras. O financiamento constitui um grande entrave e a privatização — trasvestida de terceirização — drena não poucos recursos para finalidades espúrias.
Ao povo o SUS oferece muitas coisas: consultas, prevenção, vigilância, transplantes e diálises. Oferece cuidados nos cantos mais remotos deste belo Brasil. Um verdadeiro sistema, apesar de fragmentado e com déficits na coordenação e ordenação regional.
É quase inimaginável o que poderia ter-se tornado o Brasil na pandemia do covid-19 se não tivéssemos o SUS. A epidemia trouxe o sistema para o centro das atenções. Alguns jornalistas e políticos que não sabiam nem sequer falar seu nome começaram a se interessar por ele. Alguns operadores do governo necropolítico também, operadores do sistema financeiro, lobistas de entidades ditas filantrópicas.
Nós, que sempre defendemos a saúde como direito e não mercadoria, sabemos que o SUS é um maravilhoso instrumento. Sabemos também, contudo, dos desafios e entraves que ameaçam o efetivo exercício do direito à saúde porque o construímos no dia a dia.
Desde a sanção da lei, todos os governos ficaram aquém do desejável, e alguns até do esperado. O SUS sofre o vai e vem da política nacional e local e, se tem alguém que tem evitado que soçobre, são os trabalhadores da saúde. O Brasil deve a esses milhares de guerreiros silenciosos o esforço cotidiano para salvar vidas, distribuir medicamentos, realizar a miríade de procedimentos que contribuem cotidianamente à promoção da saúde e a sua recuperação. A política negacionista e genocida do governo federal contribuiu para a morte de mais de 600 profissionais de saúde em meio à pandemia, um triste recorde nacional. Mais do que nunca, os trabalhadores do SUS merecem nossa gratidão e nossa homenagem.
As repercussões das condições de trabalho na subjetividade desses trabalhadores merecem atenção. Muitas vezes em situações de grande precariedade, em áreas marcadas pela pobreza e a violência, os trabalhadores não contam com dispositivos que os ajudem a significar e elaborar a dura realidade do dia a dia.
Marcas estruturais da sociedade brasileira como o autoritarismo, o machismo e o racismo também perpassam as organizações de saúde e o SUS em todas suas instâncias. Não é só o governo federal que é autoritário, ou a justiça que realiza interpretações de mundo a partir de sua torre de marfim. Visitem qualquer hospital. Sentem na sala de espera de qualquer ambulatório. Se desejamos que o povo defenda o SUS, precisamos garantir que se sinta bem tratado, acolhido e respeitado em todo e qualquer encontro com algum ponto do sistema.
Precisamos começar a olhar para nós mesmos em todos nossos lugares institucionais, perceber o autoritarismo em nós, a alienação em nós, o machismo e o racismo em nós mesmos. É sempre mais fácil enxergá-los nos outros. Mas, sem realizarmos esse gesto vital, será impossível não só defender o SUS, senão também à democracia e reconstruir a República.
Tarefas imprescindíveis para defender o direito à vida, à justiça, à cidadania. O SUS resiste, vive, respira, existe!
*Rosana Onocko-Campos é vice-presidente da Abrasco e presidente da Comissão Científica do 4º Congresso de Política, Planejamento e Gestão da Saúde
Artigo publicado originalmente na revista Radis, edição 217, de outubro de 2020.