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SUS: não foi tempo perdido

Portal EPSJV - EPSJV/Fiocruz

O Grande Debate do segundo dia do Abrascão se propôs a nada fácil tarefa de refletir sobre a potência e os entraves ao direito à saúde e à efetivação dos sistemas públicos universais hoje. O assunto, como não poderia deixar de ser, foi o nosso sistema: o SUS. E os palestrantes, ambos militantes históricos, com experiência na gestão, fizeram uma dobradinha para olhar para o passado e apontar rumos para o futuro. Na primeira parte, falou José Gomes Temporão, ex-ministro da Saúde e pesquisador aposentado da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (ENSP/Fiocruz). Na segunda, foi a vez de Gastão Wagner, presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva e professor titular da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

A travessia

Temporão refletiu sobre a trajetória da Reforma Sanitária brasileira, recompondo a visão do movimento sobre o que é um sistema de saúde. “Vou falar de uma posição bastante específica. Não é uma síntese, um apanhado ou um levantamento bibliográfico, mas a minha visão de dentro do sistema considerando meus 42 anos de iniciação nesse processo, desde a Faculdade de Medicina até o presente momento. Vou falar da travessia”, adiantou.

Para ele, antes de mais nada, é preciso ter consciência de que estamos lidando com um processo histórico de longa duração, que não começou com a Constituição Federal de 1988, que criou o SUS. “Trata-se de um longo percurso, fruto de um gigantesco esforço coletivo, de inúmeras e variadas experiências institucionais, sindicais, dos movimentos sociais, dos movimentos de bairros e do campo; da implantação de políticas no Estado e das reflexões feitas na academia. E no qual tivemos como referência países como Inglaterra e Canadá e, evidentemente, a onda reformista e revolucionária do século 19 que afirmou que saúde é questão de interesse da sociedade – e é sua obrigação proteger e assegurar isso. E mostrou como as questões econômicas e sociais têm impacto enorme. Eu gosto de uma frase que diz que a política nada mais é do que medicina em grande escala”.

Mas de onde vieram essas ideias? Para o ex-ministro, no Brasil poderíamos escolher alguns marcos e figuras históricas simbólicas, como Oswaldo Cruz ou a Conferência Nacional de Saúde realizada em 1963, às portas do golpe empresarial-militar. Mas “com toda a certeza”, disse, as ideias são principalmente fruto da luta política travada em muitos espaços: academia, igrejas, sindicatos, movimentos sociais, no movimento de renovação médica… “Tudo isso foi acumulando poder, energia e capacidade de transformação”, afirmou. Temporão lembrou das experiências de municípios como Londrina (PR), Niterói (RJ) e Montes Claros (MG), de programas como o Programa de Interiorização da Saúde e Saneamento (PIASS) e da gestão de Waldir Pires e Hésio Cordeiro no Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (Inamps). “A luta alimentou esse processo”, reforçou.

Para ele, contudo, o marco zero do processo que levou ao SUS foi a criação do Centro Brasileiro de Estudos em Saúde, o Cebes, em 1977. Nessa linha do tempo, logo em seguida vêm as experiências municipais dos anos 1970, a criação do Programa Nacional de Imunizações (PNI), em 1973, a ebulição do movimento da Reforma Psiquiátrica, em 1979, o Programa de Aids, em 1985. E, finalmente, a 8ª Conferência Nacional de Saúde, em 1986 que levou diretamente à proposta apresentada na Constituinte. E ao SUS.

Depois da criação do Sistema Único, muitos foram os elementos – positivos e negativos – lembrados por Temporão: a lei que o ordena, de número 8080, aprovada em 1990; o Programa de Saúde da Família, as normas operacionais básicas, ou NOBs, de 91, 93 e 96. A lei de medicamentos genéricos, que destacou, “não é da época do [ex-ministro da Saúde José] Serra, mas do Jamil Haddad, em 1993”. E prosseguiu: “Depois tivemos a lei de patentes, que afetou negativamente nossa indústria; a criação da Anvisa; da Secretaria de Ciência e Tecnologia; da Política do complexo econômico-industrial da saúde, em 2008; e a Emenda Constitucional 95, de 2016”.

A tensão de modelos

Para Temporão, dois grandes modelos do que é a saúde e o sistema de saúde afetam o SUS. De um lado, o modelo que em que predomina o conhecimento biomédico, e tem vínculos umbilicais com os hospitais, as empresas, as indústrias produtoras de medicamentos e insumos. E de outro, aquele que privilegia o conceito de determinação social da saúde, a integralidade, a transversalidade, a saúde em todas as políticas. “Este é de implementação muito mais difícil, mas muito mais potente”, observou. E explicou: “Não existem modelos puros em nenhuma das duas linhas, mas somos pelo segundo”.

E porque a Reforma Sanitária se fundou no segundo modelo, a “ideia era transformar a sociedade através e pela saúde”, destacou. Para isso, a saúde precisa ser encarada como um direito humano, o sistema precisa ser universal, visando a redução das desigualdades, o cuidado deve ser integral; e a privatização combatida. “Nossa ideia era a redução gradual da oferta privada e o fortalecimento da capacidade nacional de fornecimento de insumos estratégicos”. Somadas todas essas perspectivas e propósitos, para Temporão a Reforma Sanitária deve ser entendida como um “movimento cultural de percepção e transformação da saúde” e “um modelo de desenvolvimento humano que tem como objetivo fundar novas práticas, olhares e sujeitos coletivos”.

Para ele, nesse sentido é preciso reconhecer e celebrar que a Constituição de 1988 rompe com o que vinha antes. “Porque antes os muito ricos pagavam diretamente pelos serviços de saúde, os assalariados com carteira assinada tinham a proteção do Inamps e a grande maioria da população morria e sofria em completo abandono. O SUS veio mudar drasticamente essa situação”. Ao mesmo tempo, frisou, o Sistema teve que enfrentar duros obstáculos desde o nascimento. “Foi construído na contramão do neoliberalismo, que era – e é ainda – a visão política hegemônica”.

As dificuldades

Para o ex-ministro da Saúde, é preciso reconhecer que o SUS na sua totalidade nunca foi uma política hegemônica no interior dos governos. “Nem dos federais, nem nos estaduais. Aqui ou ali um município levou o projeto na sua radicalidade, durante um tempo. Acho que isso se deve ao gigantismo e à complexidade do projeto, que consome as energias das instituições e enfraquece, de certa forma, a capacidade de mobilização da sociedade em torno da saúde”, analisou.

Ele citou alguns nós górdios do SUS: o fato de a saúde ser encarada como gasto, não como espaço de desenvolvimento econômico e social; a oposição da mídia – “e falta de posicionamento nosso sobre isso pesou e pesa”, lamentou. Também lembrou do aliado que faltou: o movimento operário organizado. “Desde lá de trás, defendeu SUS na retórica, mas na prática negociava planos de saúde para si e suas famílias; e isso se estendeu aos trabalhadores do próprio SUS”, criticou.

Nessa seara, ele acredita que a dinâmica do capital prevaleceu, e notou que a Agência Nacional de Saúde Suplementar, a ANS, só foi criada a muito custo em 2000, anos e anos depois do nascimento do SUS.

Outro problema, segundo ele, foi a escassez de quadros técnicos. “Tivemos que refazer o sistema e, ao mesmo tempo, formar seus quadros e dirigentes”.

Mas o obstáculo “seminal”, acredita, é o “baixo grau de consciência política sobre a saúde” no país. “O Brasil não vê a saúde como valor e direito. E isso tem a ver com o processo através do qual uma determinada sociedade constrói sua visão singular da saúde, e sobre como ela deve ser garantida. Trata-se de um processo para cada um de nós, no nível individual, e ao mesmo tempo de um processo coletivo”, argumentou.

Nesse sentido, ele acredita que a publicidade cumpre um importante papel ao construir uma noção “distorcida” de consciência sanitária, principalmente no que se refere ao desejo de acesso e à valorização de tecnologias duras de manutenção e recuperação da saúde.

“A saúde privada, no imaginário, faz parte do processo de ascensão social. Enquanto que o SUS é para pobres, uma espécie de transmutação da filantropia para os tempos atuais. Vejam como é comum que editoriais defendam o SUS sempre com uma vírgula. Sempre para os mais pobres”, notou Temporão, para quem o complexo médico-industrial da saúde e o vetor da medicalização estão incorporados “em todos os espaços da vida” e produzem uma “visão da saúde e da ciência alienante” na essência.

Ele explicou: “A produção [de mercadorias] produz um sujeito para os objetos, e não só objetos para os sujeitos. Produz consumidores para a saúde”. Para ele, isso dificulta a “tomada de consciência” de que saúde é direito.

Os avanços

“Mas temos que falar dos avanços. O primeiro deles é o SUS. Seu ideário, a força política do projeto. Tivemos inegavelmente uma grande expansão do acesso e da cobertura de saúde, e isso tem tido um impacto objetivo e subjetivo. Não se trata só de números, mas da sensação de segurança da população ao perceber que tem, no caso de necessidade, para onde recorrer”, destacou Temporão.

O ex-ministro listou outros avanços: as instituições de ensino e pesquisa em Saúde Coletiva, a formação de especialistas, que fez, por exemplo, com que a resposta brasileira à epidemia de zika fosse “vigorosa” e dada “em curto prazo”.

Para ele, o fato de 7,5 mil pessoas estarem reunidas no Abrascão, e outras quatro mil estarem em Belém no congresso anual dos secretários municipais de saúde é a prova de que “o movimento está vivo”. E continuou: “O Cebes vive e está renascendo com a criação de núcleos em vários municípios; temos a ABrES [Associação Brasileira de Economia na Saúde], a Rede Unida, o movimento popular na saúde. Avançamos na participação social com conselhos, conferências, comissões intergestores”. E também em prédios, equipamentos, tecnologias e pessoas, listou.

“Temos – ou pelo menos tínhamos – o melhor programa de vacinação do mundo – que foi criado para combater a pólio, mas de lá para cá mudou muito. Eu pergunto a vocês: teríamos o PNI com a potência que tem ou tinha antes deste governo se não fosse o SUS? Não o creio”, respondeu, destacando que o Brasil dispõe da tecnologia para vacinar em um único dia 10 milhões de crianças e consegue produzir 95% das vacinas.

E citou outros números: 490 mil brasileiros que vivem com HIV são tratados no SUS. Noventa por cento dos transplantes são feitos no SUS. Reduzimos entre 2000 e 2010 a mortalidade infantil em 50%, destacou. O Brasil é o país onde menos se fuma, com uma prevalência na população adulta de 30%. “Teríamos o Inca [Instituto Nacional do Câncer] que temos hoje, e que há 20 anos era um conjunto de hospitais, e agora coordena a política de atenção ao câncer; ou teríamos a Fiocruz pujante, presente em vários estados, sem o SUS? Não creio”, voltou a dizer, citando muitas outras políticas, como a de Saúde Mental forjada na Reforma Psiquiátrica (“começou paralela à Reforma Sanitária com sua especificidade, acabou com manicômios em um processo complexo e difícil de implantação da rede substitutiva de cuidados e está sendo sabotada violentamente neste momento”, criticou).

Mas Temporão deu destaque às políticas do complexo econômico-industrial da saúde e da sustentabilidade tecnológica, que foram aprovadas na sua gestão, respectivamente em 2007 e 2008. “A sustentabilidade tecnológica é uma das coisas mais importantes pois, ao mesmo tempo, melhora condições de vida e a dimensão econômica. Para alcançar os objetivos da cidadania e de implantação do SUS é preciso ter uma base própria. Como articular necessidade em saúde com a base produtiva? E garantir um acesso igualitário e equânime?”, questionou, defendendo a redução da dependência externa na produção de medicamentos. Para ele, é preciso ter a dimensão de quanto dinheiro a saúde movimenta. “Em 2016, o PIB foi R$ 6 trilhões – e a saúde representou R$ 600 bilhões. Ou seja, 10% do PIB. A saúde pode ser a solução para a crise, mas é vista como gasto”, criticou.

Os entraves

O ex-ministro da Saúde também citou muitos entraves para que o projeto do SUS efetivamente saia do papel. Eles começam pela dificuldade de construção de redes efetivamente integradas, humanizadas, integrais e interreferenciadas, passam pela fragilidade de estados e municípios nessa integração, que faz com que desigualdades entre classes e regiões se perpetue.

No campo dos direitos sexuais e reprodutivos, Temporão considera que “prevalece a hipocrisia, o preconceito e o machismo” e citou o episódio da cartilha voltada para jovens das escolas de todo o país que tratava de assuntos como orientação sexual, aborto e sexo seguro, e foi barrada pela bancada evangélica. “Há muita violência neste país contra mulheres, gays, lésbicas e trans. O aborto é a sexta causa de mortalidade materna”, lembrou.

Como não poderia deixar de ser, um grande obstáculo lembrado por Temporão foi o financiamento. Segundo ele, menos da metade do gasto em saúde no Brasil é público, o índice mais baixo entre países América Latina e Caribe. E que metade dos gatos privados são gastos das famílias. “O setor de planos e seguros de saúde faturou R$ 160 bilhões no ano passado e atende a 25% da população, enquanto o SUS dispôs de pouco mais do que isso para atender todo mundo”. Para efeito de comparação, disse, o gasto per capita em saúde no Reino Unido, país que tem um sistema público universal de saúde, foi de US$ 4.450 em 2015, enquanto o Brasil gastou apenas US$ 780.

“Sabemos que o ideário do SUS é público, universal e não diferencia classe, tem a saúde como um direito e atua na dimensão coletiva – e que isso está em conflito direto com a visão hegemônica, com a globalização, o empreendedorismo, o consumismo, o mercantilismo de quem paga poder ter uma saúde melhor, reproduzindo desigualdade no mesmo espaço. O SUS é projeto potente, é parte central do processo civilizatório. Sem ele, é barbárie social. Mas avaliação da população nem sempre é positiva, há desumanização, desamparo, tempo de espera. E, depois do golpe, muito retrocesso”, disse.

O que fazer?

Coube à Gastão Wagner responder à inquietante pergunta. O presidente da Abrasco disse que tinha sido provocado, meses antes, a escrever sobre isso para o número especial da revista Ciência & Saúde Coletiva sobre os 30 anos do SUS. E que, para dar título ao seu artigo, se inspirou no livro de Lênin que “pretendeu e organizou a revolução – mas isso é assunto para outro dia”, brincou. “A discussão de hoje é sobre alguns elementos centrais para aumentar a potência de quem é a favor do SUS, da democracia e dos direitos – ou seja, nós. Aumentar nossa efetividade política tendo em vista o conjunto de adversidades que o SUS enfrentou desde a sua origem, e que vêm se agravando ao longo do tempo”, propôs.

Gastão também deu destaque ao contexto desfavorável em que o Sistema Único foi criado, e implementado. Na sua avaliação, o projeto neoliberal “não suporta, não defende, dificulta e descontrói” sistemas públicos e direitos sociais, os trabalhistas em particular. E a hegemonia deste projeto apresentou uma força cultural e política persistentes, além de uma capacidade de pressão sobre o Estado, através da mídia, nada desprezível.

“O golpe parlamentar e jurídico desequilibrou a capacidade de boa parte da sociedade brasileira de fazer oposição a esse projeto. Mas quero dizer que o capital não é capaz de fazer o que quiser com a gente, com o Brasil, com a sociedade. Sou uma das pessoas que ainda trabalha com a perspectiva da dialética, da coprodução dos fatos sociais. Sem dúvida há dominância do capital em todo o mundo, e são singularizadas as capacidades de cada povo impor limites à insensibilidade social quase absoluta deste capitalismo que utiliza o Estado, a mídia e entra na nossa cabeça com sua visão de ser humano em que o mérito é ser “o vencedor” capaz de competir, como uma reprodução da selva nas relações humanas que descontrói tudo o que a humanidade conquistou em direitos sociais, dignidade, respeito ao outro”, analisou. Para sustentar: “Apesar disso não somos papel em branco”.

De acordo com ele, sofremos revezes importantes, mas duas perguntas se impõem: O podemos fazer com isso? O que estamos fazendo com isso? “A gente tem elementos favoráveis já atuando e outros potencialmente favoráveis à construção da democracia, do bem-estar social e da justiça social que são capazes de botar limites a esse projeto”, disse, continuando: “E temos elementos favoráveis ao SUS”.

Para ele, a luta pregressa por democracia no Brasil demonstrou ter “competência política, ética, técnica e científica” para fazer o diagnóstico e apresentar à sociedade as alternativas. Gastão colocou, nesse sentido, seu ponto de vista como divergente do “senso comum da chamada esquerda” que para ele, sofre de um mal: o sentimento agônico. Ele tomou emprestado esse termo de Antonio Candido, para quem havia um grupo de pessoas com boa vontade, mas fundamentalmente vítimas de um pessimismo que levaria à paralisia. “Em conversas com alunos, em entrevistas com jornalistas paira a dúvida: o SUS não acabou ainda? Claro que não. E não é que eu ‘ache’ isso. Não há evidências sobre isso”, defendeu, dando destaque à sobrevivência até mesmo de serviços públicos que foram criados antes do SUS – “e foram elementos favoráveis ao SUS”, lembrou – como a Fiocruz, o Instituto Butantã e os hospitais universitários.

Outra afirmação que carece de mais base científica na opinião dele é a de que a população tem pouca consciência sanitária, que está dominada pela “ideologia do consumismo”. Há que investigar, disse. “Pois 70% da população que ganha menos de três salários mínimos vive o SUS cotidianamente – para o bem ou para o mal. Entra e sai todo o dia do SUS. Diferente de nós que estamos aqui, ela só tem SUS. E o Sistema cuida também de 50% dos brasileiros na atenção básica, 75% dos diabéticos e hipertensos; 90% dos portadores de HIV e 70% das pessoas com transtorno mental grave também usam. Cotidianamente”, listou.
Para Gastão, essa “relação carnal” com o Sistema é ao mesmo tempo gratificante (88% o querem) e angustiante (77% o criticam). “Mas essas pessoas precisam, utilizam e reconhecem o que estão recebendo. Parte da vida delas depende disso, mas elas sofrem muito pela dificuldade, pelas filas, pela desorientação e fragmentação do SUS”, reconheceu.

Mas o fato é que, segundo o professor da Unicamp, a direita está tendo muita dificuldade de descontruir o SUS. Nas prefeituras, estados e no governo federal predomina o recorte conservador, diz. “Se tivesse que aprovar o SUS hoje, quase dois terços do nosso Congresso seriam contra. Só que essas pessoas são políticos e fazem cálculo”, observou. E, para ele, sabem que não podem atuar de forma direta na liquidação do SUS como aconteceu com a reforma trabalhista, “ou como querem fazer com a Previdência e não conseguiram ainda”, destacou. “Caiu a cobertura de vacina, voltou o sarampo, e olha o escândalo que está sendo feito, inclusive na da imprensa conservadora. Este é um elemento favorável ao nosso movimento”, apontou.

Para ele, o ataque ao SUS se dá de forma incremental. “É importante conhecer nossa força”, defendeu. Mas a maior parte da população que utiliza o SUS está com dificuldade de encontrar canais políticos de confiança, considerou. “E está faltando a gente deixar claro o nosso projeto para o direito à saúde. É o SUS. Precisa ser um pouquinho mais detalhado. As pessoas precisam entender por que tem tanta coisa ruim, e porque elas sentem que podem não ter mais direito a qualquer momento”.

Rumo ao futuro: sem meias palavras, nem meios projetos

Como o SUS existe numa hegemonia neoliberal crescente?, questionou Gastão. “Como se agravou o descaso e um certo ar blasé de todos os nossos governos com o SUS? Qual governo federal, estadual assumiu o SUS? Nosso projeto é de sistema público universal, inspirado na tradição do NHS do Reino Unido, no sistema da Espanha. Não tem que ter meias palavras, nem meios projetos”, sentenciou.

Para ele, a verdade é que a Reforma Sanitária “nunca comoveu sindicalistas” organizados. “Só comoveu a classe média ligada aos trabalhadores da saúde, que são um ator importante na construção do SUS. E reconhecer esse papel é importante porque indica um caminho de futuro”, disse.

Ao mesmo tempo, Gastão defendeu que o campo da saúde não pode se isolar. “Temos que nos integrar, articular com esse 70% da população que vive o SUS”, afirmou. A quem o responde que isso já está sendo feito por muitos profissionais nas periferias e nos serviços de saúde por aí, ele responde: “Não está sendo o suficiente. Temos que fortalecer. O nosso movimento tem que ir ao povo levando o projeto do SUS integral. Como fizemos isso até agora?”, perguntou. E retomou: “Defendemos nossos interesses corporativos. Metade dos médicos e a maioria das outras profissões estão pró-mercado. Há uma insensibilidade social muito grande que precisa ser revertida”.

Para fazer isso, ele aposta num diálogo que dê centralidade ao que mais preocupa a população brasileira: o acesso, a humanização e a efetividade do cuidado. “Onde a gente estiver precisamos garantir a melhor estratégica de cuidado, o melhor ensino possível, a melhor relação com os usuários. E esse movimento tem que começar aqui e agora, onde a gente estiver. É a receita para o fortalecimento do movimento e aliança com setores dos movimentos sociais. Tem gente que chama isso de micropolítica. Eu chamo de política – e da grande”, afirmou.

O rumo do movimento, para ele, tem de ser audacioso e apontar para algo com um NHS tupiniquim, disse em referência ao sistema nacional de saúde do Reino Unido. “Público”, frisou.

Ele destacou que foi o ativismo e a militância aliados à atuação profissional que permitiram que o movimento “chegasse vivo até agora”. Mas notou que alguma coisa se perdeu pelo caminho, principalmente quando o assunto são os secretários municipais de saúde, antes grandes aliados e inventores de possibilidades para o SUS. “Tiveram papel importante, mas isso vem sendo perdido. As últimas eleições municipais fizeram composição de secretários municipais conservadores. Não é à toa que o congresso do Conasems está acontecendo ao mesmo tempo em que o Abrascão. A liderança do Conasems tem um projeto de sistema de saúde centrado no setor privado, infelizmente”, criticou.

“Estou defendendo que temos que ter projeto, não tem que ser inventado. Já está aí. Precisamos responder como vamos diminuir as filas. Quais são os vazios sanitários. Enfrentar os problemas independente do prefeito de ocasião e lutar para ter prefeito melhor, vereador melhor, construir o controle social de forma mais adequada. Estou propondo, enfatizando, canais cotidianos – criar grupos de defesa do SUS junto à cada serviço de saúde, universidade, território. Estamos descuidando disso. Se a gente conseguir levar essa mensagem nós vamos para frente”.

Gastão defendeu ainda o aprofundamento da reforma do Estado e da gestão do SUS, “ainda que esses temas não comovam a maior parte da população”. E brincou: “Vale a pena, quem tiver paciência, conversar com o movimento sindical organizado e com a classe médica. Os sindicatos optaram pelo seguro privado, a classe médica está fora do SUS. Temos que tensionar isso. Deixar de passar a mão na cabeça. Nossos líderes políticos passaram a ir no setor privado, e ostensivamente”, notou.

Por fim, para fazer tudo isso “não ser idealista”, disse, tem que revogar a EC 95. “Temos que ter mais recursos. Mas quando a gente for pedir dinheiro tem que dizer onde vamos utilizar”.

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