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SUS: momento decisivo

Maíra Mathias - EPSJV/Fiocruz

“Ontem, a mais ou menos essa hora, me agarrou uma tristeza danada. Depressão. Agonia. Ansiedade. Dificuldade muito grande de pensar o que nós fazemos agora. Estamos sofrendo uma derrota importante política, econômica, ética e social”, disse o presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), Gastão Wagner, para um teatro lotado. O grande debate sobre ‘Subjetividade e saúde: desafios do SUS em tempos de crise democrática’, cujo tema foi escolhido meses atrás, por obra da conjuntura política se tornou mais atual que nunca. Isso porque naquela madrugada de 11 de outubro, a Câmara dos Deputados aprovou em primeiro turno a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 241 que congela o orçamento público por 20 anos, afetando diretamente o financiamento das políticas públicas. Na boca da plateia que participava do 7º Congresso Brasileiro de Ciências Sociais e Humanas em Saúde, algumas perguntas não queriam calar: O que fazer neste momento decisivo? O SUS vai acabar?

“Nossa fortaleza é que, apesar disso, o SUS concreto tem importância efetiva para a maioria dos brasileiros. O que fizemos nesses 25 anos não é pouca coisa. Tem que ter muitos anos de ‘songa-monguice’ para desmontar tudo”, afirmou Gastão. Lembrando a música imortalizada por Beth Carvalho, ele sugeriu que o apesar do momento ser de ‘reconhecer a queda’, só isso não basta. “Quero falar daqui para frente. Do ‘não desanima, levanta, sacode a poeira e dá a volta por cima’”.

Segundo ele, nenhum governo estadual ou federal assumiu a implementação do SUS como projeto prioritário. “A diferença agora é que temos um governo contra o SUS. Os outros eram a favor do SUS, mas com enfoque restrito”, disse. Para Gastão, a racionalidade dos governos e dos gestores foi incorporada pelos militantes da Reforma Sanitária que abriram mão da radicalidade em nome da realpolitik. “A gente deve assumir um projeto de sistema público universal sem meio termo. Tem que ser um SUS em todo o país e para toda a população”. Além disso, segundo ele, em um momento como agora, quando o SUS e as políticas sociais estão acuadas, é suicídio ficar na defensiva. “Precisamos ir para a ofensiva, dizer que o SUS é importante e reatar os laços com boa parte da população brasileira que a esquerda perdeu”.

Para isso, o presidente da Abrasco acredita que as estratégias de luta precisam ser repensadas e resgatadas. “Temos que apostar no movimento socioinstitucional. O SUS tem essa tradição. De baixo para cima”. Gastão aposta em uma combinação de táticas para construir uma “rebelião” em defesa das políticas públicas e dos direitos sociais. Ele acredita que o compromisso geral que deve balizar essa luta é construir um novo tipo de serviço público sem privatização e terceirização. “Vamos para cima das OSs”, falou. E também mais participação: “Aumentar o poder da sociedade civil e diminuir o poder do Executivo. [O SUS] é uma política da nação, tem que ter continuidade”. Já no plano local, ele defendeu a formação de “frentes de coletivos” e a ocupação “não para paralisar, mas para cuidar, para fazer funcionar”. “O momento é de ativismo. Neutralidade é um crime”, sentenciou.

Inconstitucional – e impossível?

Luis Eugenio Souza, da Universidade Federal da Bahia (UFBA), afirmou que o governo é claro em suas intenções e ações. “Temer explicita seu objetivo central: assegurar superávit primário de maneira a não comprometer o serviço da dívida que representa 45% do orçamento federal”, disse, ressaltando que se prioriza o pagamento de juros de uma dívida nunca auditada. Para ele, a PEC 241 tem justamente esse caráter draconiano, pois congela os gastos do governo por 20 anos asfixiando financeiramente todos os direitos sociais. Luis Eugenio, citando a nota pública assinada pela Procuradoria de Direitos do Cidadão do Ministério Público Federal e outras muitas entidades, afirmou que a PEC 241 é inconstitucional. “Esses cortes exigiriam uma nova Assembleia Nacional constituinte, são cláusulas pétreas. É o golpe dentro do golpe. É rasgar a Constituição”.

Durante o debate, ele defendeu a posição de que com os cortes, o governo não pretende acabar de vez com o SUS – até porque isso não é bom negócio para os empresários que apoiam as medidas. “O SUS não vai acabar. Os planos usam o SUS como resseguro”. O que acaba, segundo ele, é o projeto da Reforma Sanitária para o SUS: universal, igualitário, forte. “Temos que distinguir os diversos projetos políticos que existem para o SUS”, ressaltou.

Já Roseni Pinheiro, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UERJ), insistiu que o impossível pode acontecer, para o mal – e também para o bem. “A gente achava que era impossível o SUS acabar, o Estado laico acabar. Está acontecendo. Portanto, o impossível também acontece. Se hoje para que reverter esse ataque é impossível, então reverter é possível”.

O resultado da governabilidade

Para Alcides Miranda, o país está novamente mergulhado em um “regime de exceção”. Mas analisar o vai e vem da história e suas ironias, segundo o professor da UFRGS, é importante para entender a especificidade do momento atual. “Quem fez a declaração da independência foi o príncipe da metrópole. Quem proclamou a República foi um general. Foi durante o regime de Estado Novo que os direitos trabalhistas foram criados. Temos tido desde sempre ciclos de preponderância de regime de exceção. E se muitas vezes eles vêm alternados com ciclos de expansão de direitos políticos, na maior parte das vezes vêm acompanhados por transições conservadoras. O discurso contra corrupção já provocou suicídios, elegeu e derrubou presidentes e é sempre acionado para lidar com o senso comum para fazer e apressar transições. Muda-se para que tudo permaneça como está”, notou.

Ainda contextualizando, Alcides lembrou que foi em um governo de transição conservadora da ditadura militar para a democracia, em um contexto em que ao invés de Assembleia Nacional Constituinte exclusiva, tivemos um Congresso constituinte, que se buscou avançar e escrever na Carta Magma o que chamou de “incursões prescritivas de um Estado social”. Mas os limites para a concretização dessas ‘prescrições’ foram muitos. Alcides afirmou que os vários governos adotaram o discurso da governabilidade para barrar avanços e participação do povo na política. “Não é a governabilidade das praças públicas, mas dos bastidores dos palácios e do mercado parlamentar da pequena política. Isso cobra um preço”.

Nesses mesmos anos, de acordo com ele, outro discurso foi se tornando mais e mais hegemônico, abarcando inclusive parte da esquerda: o de que a administração pública é incompetente, pouco flexível e, por isso, é necessário transmutar o direito público para o direito privado ou, em outras palavras, empresariar a gestão pública. Na saúde, Alcides afirmou que muitos militantes da Reforma Sanitária se conformaram à institucionalidade, acreditando que ocupar espaços no poder e, uma vez lá dentro, “traficar pequenos avanços” seria o suficiente.

O resultado disso, segundo ele, é que uma política pública como o SUS do alto de seus 28 anos se vê ameaçada em poucos meses de governo “ilegítimo”. Alcides defende que isso acontece porque a esquerda abandonou o caráter pedagógico das políticas públicas, se concentrando apenas no valor de uso – de procedimentos biomédicos na saúde, por exemplo. “Nos acostumamos a uma arquitetura disforme de puxadinhos e penduricalhos de políticas”.

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