Os ataques à universalidade do SUS e ao direito à saúde que fazem parte do conjunto de propostas econômicas e sociais batizado de “Agenda Brasil”, apresentada pelo presidente do Senado Federal Renan Calheiros no início do mês, têm mobilizado o movimento sanitário e setores da imprensa. O rápido posicionamento das entidades e a pressão de militantes, profissionais e pesquisadores da Saúde Coletiva sinalizaram para a sociedade o risco que estão sofrendo os direitos assegurados no capítulo Saúde da Constituição Federal, como aponta o documento “Carta à Presidente Dilma“, que critica “o uso do SUS como peça de barganha e loteamento político” no momento de crise, servindo a interesses escusos, “interessados a constitucionalização do sub-financiamento público, o incentivo à rede hospitalar privada com abertura ao capital estrangeiro, a ampliação da desvinculação das receitas orçamentárias da União, a desregulação do mercado de planos de saúde e o aumento de subsídios públicos ao setor privado”.
Aparentemente, a cobrança de serviços do SUS de acordo com a faixa de renda determinada pelo Imposto de Renda da Pessoa Física está fora da pauta da dita “Agenda”. No entanto, o debate permanece: que setores da sociedade vão se comprometer com o financiamento público do sistema?
No domingo 23, o jornal Diário do Nordeste entrou neste debate e publicou a matéria Financiamento do SUS vira alvo da equipe econômica. Abrasco, Cebes e Conass foram ouvidos pela reportagem e, em uníssono, destacaram a importância da universalidade e da necessidade do debate sobre o financiamento à saúde de forma clara, franca e com participação social.
Já na última terça (25), quem levantou o assunto na imprensa foi Cláudia Collucci, jornalista e colunista da Folha de S. Paulo. No texto Querer um SUS melhor não é sonho, é deixar de ser trouxa, ela parte de relatos pessoais para mostrar como todos os brasileiros são beneficiados e atendidos pelo Sistema Único de Saúde e que é papel do Estado brasileiro garantir o funcionamento adequado e de qualidade na prestação do serviço. Sem negar a necessidade de sanar problemas de gestão e da cultura administrativa viciada pela corrupção, Claudia Collucci aponta que o principal problema é, de fato, a definição e a composição de recursos – recursos esses bancados, majoritariamente, pela população e drenados pela iniciativa privada, seja pelas operadoras dos planos de saúde, seja pela indústria farmacêutica e demais empresas que compõem o Complexo Econômico e Industrial da Saúde. “Hoje, 56% do custo da saúde recai sobre as famílias brasileiras. O gasto público em saúde recuou para 44% do total”, escreveu.
A jornalista destaca a organização do movimento sanitário na reação contrária à possibilidade de cobrança de serviços do SUS por faixa de renda determinada pela Receita Federal e pelas alíquotas d0 Imposto de Renda de Pessoa Física, cita os questionamentos feitos pelo Ministro Arthur Chioro em sua fala na cerimônia de abertura do 11º Congresso Brasileiro de Saúde Coletiva e convoca os leitores a se posicionarem: “É hora de quem ainda acredita em valores coletivos de solidariedade e igualdade (princípios que norteiam o SUS) participar desse debate”. Confira o texto na íntegra abaixo ou leia diretamente no site do veículo. Veja também o discurso de Arthur Chioro no Abrascão 2015, na TV Abrasco.
Querer um SUS melhor não é sonho, é deixar de ser trouxa
Por Claudia Collucci
“É provável que você que lê agora este texto não seja um usuário habitual do SUS. Eu também não sou. Assim como mais de 50 milhões de brasileiros, tenho um plano de saúde.
Mas já utilizei o SUS várias vezes. Em dois acidentes de trânsito em que fui vítima, os socorristas do Samu me levaram a hospitais públicos de referência. O primeiro, o Hospital das Clínicas de Ribeirão Preto, e o segundo, o Hospital Municipal São José, em Joinville (SP). Ainda bem. Sabia que nesses locais estavam os profissionais mais habilitados para atender traumas porque o fazem com muita frequência.
Nas duas ocasiões, fiquei um tempo em macas no corredor, aguardando atendimento. Em uma delas, sofri um corte profundo na cabeça e havia suspeita de traumatismo craniano (passou perto, houve uma fissura). Estava ensaguentada, a cabeça latejava, mas aguardei pacientemente a minha vez porque era evidente que havia ali gente em estado muito mais grave do que o meu. Acompanhei a tentativa de os médicos reanimarem um senhor de meia-idade. Um, dois, três, quatro, cinco choques com desfibrilador e nada. Ele morreu ali, do meu lado.
Na segunda vez, no hospital em Joinville, fiquei na maca encostada ao caminhoneiro que, após de dormir no volante, jogou meu carro contra o guard rail. Perda total do veículo e quase da minha vida. Fui socorrida desmaiada, mas, felizmente, depois do período protocolar de observação, saí sem sequelas.
Todas as vacinas que já tomei foram no sistema público de saúde. Meus pais têm plano de saúde, mas buscam parte das medicações de uso contínuo no Farmácia Popular. Tenho tios, primos e conhecidos usuários frequentes do SUS, que fizeram, inclusive, transplantes.
Por essas e outras razões sou fã do sistema. Mas não fecho os olhos para os inúmeros problemas que ele tem. Como já escreveu o médico generalista espanhol Juan Gérvas, “no Brasil existe apenas a lei e o desejo de oferecer um sistema público, único e universal.”
Ele tem toda razão. Hoje, 56% do custo da saúde recai sobre as famílias brasileiras. O gasto público em saúde recuou para 44% do total. Na Inglaterra e Suécia, por exemplo, que têm sistemas de saúde públicos e universais, o percentual é quase o dobro –84% e 81%, respectivamente.
Não bastasse o subfinanciamento, tem muito dinheiro desperdiçado por má gestão, ineficiência e corrupção. A coisa está errada em todos os níveis. Do faz-de-conta da carga horária dos médicos nas unidades públicas de saúde às fraudes milionárias, como as que envolveram a máfia das órteses e próteses. O SUS necessita de mais dinheiro, não resta a menor dúvida, mas fechar o ralo do desperdício precisa, necessariamente, caminhar ao lado da discussão por mais verbas.
Ao mesmo tempo, estamos assistindo ao fortalecimento de setores privados de saúde. E a Agenda Brasil, apresentada no último dia 11 aos ministros da área econômica, deu provas evidentes disso, quando uma das propostas sugeria a possibilidade de cobrança diferenciada de procedimentos do SUS por faixa de renda. Isso só não foi pra frente porque houve uma grande reação dos setores organizados do SUS.
A grande questão, contudo, permanece: de onde sairá o dinheiro para colocar em prática o SUS que só existe no papel? Em recente evento da Abrasco (Associação Brasileira de Saúde Coletiva), o ministro da Saúde, Artur Chioro, fez algumas provocações sobre isso. “Esse financiamento virá do imposto das grandes fortunas ou da taxação das heranças? Vamos mexer na chamada taxação do pecado (fumo, álcool, jogo de azar etc)? Vamos direcionar recursos Dpvat [Danos Pessoais causados por Veículos Automotores de Via Terrestre), que hoje ficam nas mãos das seguradoras e não vão para o usuário?”
É hora de quem ainda acredita em valores coletivos de solidariedade e igualdade (princípios que norteiam o SUS) participar desse debate. Eu quero um SUS melhor, um SUS que me dê a segurança de um cuidado adequado, no tempo certo. Eu e você já pagamos impostos suficientes e temos que brigar por isso. Não acho que seja sonhar demais. É simplesmente deixar de trouxa.”