Em maio de 2007, alertávamos nesta Folha que no Complexo Econômico-Industrial da Saúde (Ceis) “há enorme fragilidade econômica e tecnológica e que um país desenvolvido requer base produtiva forte para atender à sociedade”. A vulnerabilidade existente para garantir o acesso universal e a necessidade de desenvolver um vigoroso sistema produtivo e de inovação em saúde exigiam a busca de soluções.
O complexo da saúde incorporava um conceito e uma política desafiadora para um país como o Brasil. Em nossa concepção, o SUS, o maior sistema universal do mundo, estava assentado em “pés de barro” pela fragilidade da capacidade produtiva e tecnológica local. Defendíamos um novo padrão de política pública que articulasse diferentes indústrias (farmacêutica e biotecnológica, de equipamentos e materiais médicos) com os serviços de saúde (a exemplo do uso dos ventiladores nas UTIs).
Foi com essa concepção que se iniciou, a partir de 2007, a política de fortalecimento do Ceis para que o Brasil construísse uma base produtiva que fizesse frente às vulnerabilidades do acesso à saúde. No processo de desenvolvimento da política, a utilização do poder de compra do Estado foi utilizada para desenvolver a produção local em parceria com as empresas privadas, considerando que a saúde é reconhecidamente uma área de elevadíssimas falhas de mercado, de jogo competitivo monopolista e de práticas abusivas de toda ordem.
Essa política de Estado, implementada por ministros de diferentes partidos e concepções, foi fragilizada com a extinção do Grupo Executivo do Complexo Industrial da Saúde (Gecis) em dezembro de 2017. Hoje, ele cumpriria importante papel no enfrentamento da pandemia, pois articulava, sob o comando do Ministério da Saúde, 14 ministérios e instituições públicas, envolvendo da Casa Civil aos ministérios da área econômica e da indústria e de CT&I (ciência, tecnologia e inovação).
Cerca de 70 países adotam práticas protecionistas, impondo barreiras de acesso aos produtos. A dependência de importações em saúde supera US$ 15 bilhões. Em ventiladores pulmonares, a dependência do Brasil quintuplicou, em termos reais, atingindo US$ 50 milhões em duas décadas.
Frente a esse contexto, além das medidas emergenciais, urge retomarmos uma visão estruturante de uma política para o Ceis que envolvam quatro pilares:
1 – Reconstrução da capacidade de coordenação do Estado no Ceis, com a recriação do Grupo Executivo Interministerial sob o comando do Ministério da Saúde;
2 – Desenvolvimento da indústria e da produção em saúde com base no poder de compra do Estado e na capacidade de CT&I nacional, viabilizando a entrada do Brasil na 4ª revolução industrial para superar a vulnerabilidade existente na saúde;
3 – Fortalecer o SUS em articulação com o sistema produtivo e tecnológico, envolvendo desde a atenção básica até os níveis mais complexos de atenção, como as UTIs que hoje tanto afligem os brasileiros;
4 – Convocamos governo e sociedade para uma discussão democrática para nunca mais ficarmos de joelhos para garantir o acesso universal e o direito à vida, como estamos, tristemente, vivendo no presente com a pandemia de Covid-19.
* José Gomes Temporão é ex-ministro da Saúde (2007-2010), médico sanitarista, membro titular da Academia Nacional de Medicina e pesquisador da Fiocruz; Carlos Gadelha é líder do grupo de pesquisa ‘Desenvolvimento, Inovação e Complexo Econômico-Industrial da Saúde’ e coordenador de prospecção da Fiocruz, e integrante do Comitê Assessor de Ciência e Tecnologia em Saúde da Abrasco – Publicado originalmente no jornal Folha de S. Paulo, em 19/04/2020 – Clique e acesse a publicação original