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“Temos uma epidemia em progresso e contamos com poucas armas para esse embate”

Como enfrentar uma epidemia sem dados sobre sua frequência da doença, com poucos estudos científicos, divergências nos sistemas de notificação e, ainda por cima, com um vírus que deixa poucos rastros passado o momento agudo da infecção? Essas foram algumas da inquietações apresentadas e debatidas por Gloria Teixeira, professora do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia (ISC/UFBA), integrante de dois comitês de peritos do Ministério da Saúde (MS) e integrante da diretoria da Abrasco na aula inaugural Zika vírus – Um novo desafio para a Saúde Pública brasileira, proferida no Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IMS/Uerj), realizada em 18 de março, na sede da instituição, no Rio de Janeiro. Estudantes, pesquisadores e autoridades acadêmicas, como Egberto Moura, sub-reitor de pós-graduação e pesquisa da universidade, prestigiaram o evento, que foi aberto por Eduardo Faerstein, professor do IMS e vice-presidente da Abrasco. A atividade foi aprovada como atividade de greve. A Uerj está parada desde o dia 07 de março.

Ao iniciar sua fala, Gloria fez um panorama de conceitos e situações que localizam e situam os desafios vividos. Pela primeira vez no país circulam três diferentes vírus no espaço urbano, fato que já ganhou o nome de tríplice epidemia. Apesar da denominação comum de arboviroses – vírus transmitidos direta ou indiretamente por artrópodes, os três agentes infecciosos não são da mesma categoria: enquanto zika e dengue são da família flaviviridae, o chicungunya é da família togaviridae, com sintomatologias semelhantes na fase aguda e tratamentos distintos. No entanto, o ciclo epidemiológico dos três vírus é determinado pelo vetor em comum, o mosquito Aedes aegypti, um antigo conhecido dos brasileiros.

A rapidez e a força da disseminação do zika em meio à população são motivos de atenção e devem ser investigados cientificamente, segundo Gloria Teixeira, que traçou uma linha histórica para falar do percurso deste flavivirus descoberto na floresta de Zika, em Uganda, no ano de 1947, e que atravessou o planeta, passando primeiramente pelo sudeste asiático, depois as ilhas da Micronésia e Polinésia, a ilha de Páscoa, na costa do Oceano Pacífico na América do Sul, até chegar ao Brasil.

“Temos de lembrar que as epidemias de dengue recomeçaram em 1980 e atingiram seu pico máximo em 1998. O vírus chicungunya atingiu cerca de 40 países em sete, oito meses. Com o zika foi tudo muito mais rápido, temos um quadro acelerado”, explicou Gloria.

No Brasil, o retrato dessa epidemia explosiva começa em 2014, quando pacientes chegaram aos serviços de saúde do Rio Grande do Norte com quadro de febre leve ou intermitente e forte exantema espalhado na pele. Em 2015, sintomas parecidos foram diagnosticados no estado da Bahia, tanto na capital, Salvador, como nas cidades do interior, com destaque para Feira de Santana e Camaçari. Em novembro do mesmo ano, o Ministério da Saúde decretou a situação de emergência sanitária por conta da  microcefalia relacionada ao zika.

Uma das dificuldades apontadas por Gloria que explicam a dificuldade e demora da identificação da epidemia são as diferentes formas de notificação que os estados registraram nas duas plataformas de acompanhamento epidemiológico utilizadas pelo Ministério da Saúde, gestores e pesquisadores: o Sisan Net e o FormSUS. “Nos dois sistemas, as curvas de incidência das doenças não se superpõem, o que não permitiu uma interpretação coerente, pois ficou muito dependente da forma como os estados realizaram as notificações”, ressaltou Gloria, destacando que essa dificuldade da identificação do zika pode ter insuflado a epidemia de dengue de 2103.

Para uma melhor identificação do quadro, a Coordenação Nacional de Vigilância Epidemiológica do MS definiu unidades sentinelas para aferição do cenário epidemiológico e detecção do vírus pelo exame PCR. Recentemente, foi definida uma nova forma de notificação dos quadros de doenças infecciosas, com reformulação da ficha de investigação, que encontra-se em fase de implantação.

Além da ficha, Gloria ressaltou que o Ministério tem investido em protocolos para auxiliar na identificação dos quadros clínicos, muitas vezes parecidos, entre as três doenças e que apresentam complicações posteriores diferentes. A dengue, com suas quatro sorologias variantes, continua a ser a mais perigosa no período da infecção, mas não deixa danos posteriores, ao contrário das duas outras viroses. Cerca de 60% das pessoas que tiveram chicungunya reclamam de dores nas articulações passados meses da infecção, e já há a confirmação de que o zika pode produzir a síndrome de Guillian Barré em alguns dos casos. Mesmo assim, segundo a pesquisadora, é necessário um diagnóstico rápido para melhor conduzir o manejo clínico dos casos neurológicos  e graves de zika. São poucos os casos de coinfecção das viroses.

A tragédia da microcefalia: A segunda parte da aula debateu o quadro de microcefalia decorrente de zika, que deixou a sociedade brasileira e internacional desde outubro de 2015, com a confirmação de casos graves de má formação do cérebro e da caixa craniana em 60 crianças no estado de Pernambuco. Estudos posteriores apontaram para a detecção de fragmentos do vírus no líquido amniótico, em tecidos do sistema nervoso e no tecido placentário, com marcas efetivas do seu poder de destruição em células neurológicas.

Um dos problemas apontados por Gloria é a dificuldade nas investigações dos casos. Dos mais de 6.400 notificações, apenas 34% estão em investigação, com confirmação de infecção pelo zika em 70% dos 182 óbitos infantis registrados.

Ao comentar que não houve registro de casos de microcefalia nas epidemias do vírus na Ásia e na Oceania, Gloria levantou algumas das hipóteses debatidas no estudo publicado no American Journal of Public Health liderado por ela e pela professora Laura Rodrigues. “É possível que o vírus tenha ganho em patogenicidade nesse decorrer de tempo, mas é uma hipótese inicial”, comentou. Outras hipóteses discutidas são a transmissão do zika por contato sexual e a constituição de um quadro de imunidade prolongada estimada, como se dá em infecções virais como sarampo, rubéola e catapora.

Num cenário de solução difícil, Glória aposta na ciência como estratégia de produção de respostas, ao destacar o artigo redigido por pesquisadores brasileiros que apontam a construção de uma agenda científica para compreensão das doenças. “Só assim será possível construir uma história natural da doença, por meio de coortes para acompanhamento das crianças e reorganização da rede de atenção. O que podemos dizer hoje é que temos uma epidemia em progresso e contamos com poucas armas para esse embate”, concluiu Gloria.

Durante o debate, a docente não fugiu das polêmicas que envolvem o assunto. Sobre a nota técnica assinada por diversos grupos temáticos da Abrasco, ela relembrou que o controle integrado é uma estratégia de prevenção próxima, mas não idêntica ao do tempo de Oswaldo Cruz. Reforçou também que o saneamento deve ser encarado como prioridade pela esfera pública, lembrando um plano de controle do Aedes aegypti baseado no saneamento aprovado pelo Conselho Nacional de Saúde e abraçado pelo então ministro da saúde Adib Jatene no início da década de 1990 e que, infelizmente, não foi à frente.

“Tem se priorizado o controle químico, o que não é ideal. Mas num momento de epidemia não se pode deixar de usá-lo, temos de utilizar todas as armas”, frisou Gloria, que também se colocou a favor da mudança da legislação sobre o aborto. “É um direito da mulher decidir sobre seu corpo, sua vida e a condições de gerar vida”.

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