Uma geração de profissionais, gestores, pesquisadores em políticas públicas de alimentação e nutrição foram formados e inspirados pelas propostas de Ivan Beghin – ele faleceu na Bélgica neste mês de abril, fica a memória, o legado e a inspiração. Em homenagem, a pesquisadora Leonor Pacheco, da Universidade de Brasília (UnB) e membro do Comitê de Assessoramento Permanente de Ciência e Tecnologia em Saúde da Abrasco, redigiu um texto-tributo:
Médico, pesquisador e pensador devotado à Nutrição Social, Ivan veio ao Brasil após uma temporada no Instituto de Nutrição da América Central e Panamá, INCAP. Junto com sua querida Helène aqui criou seus filhos por quase uma década (hoje, filhos e netos residem no Brasil). De volta à Bélgica lecionou no Instituto de Medicina Tropical da Antuérpia, foi consultor da Organização Mundial da Saúde, membro da Royal Academy of Overseas Sciences e da organização não governamental Nutrition Tier Monde. Uma de suas obras mais citadas é: “A guide to nutritional assessment” publicado pela Organização Mundial da Saúde e traduzido em outros idiomas.
No Brasil guiou e inspirou inúmeros profissionais, gestores, pesquisadores e professores em políticas públicas de Alimentação e Nutrição, do seu modo generoso, interessado de fato pelo crescimento do outro, como um verdadeiro mestre deve ser. Contribuiu para formar uma escola de profissionais brasileiros preocupados com a Nutrição em todas suas dimensões: social, humana e política.
Era um professor carismático, brilhante, de uma vitalidade incrível. Perdemos um grande nome na Nutrição, um mestre singular. Membros do GT de Alimentação e Nutrição em Saúde Coletiva da Abrasco e outros militantes na área deixam aqui registrado o seu pesar. Sabemos que a vida é fugaz, mas é sempre difícil lidar com a perda e a facticidade da morte daqueles que amamos.
+ Acesse aqui a versão em espanhol da obra “A guide to nutritional assessment”
No site da Rede de Alimentação e Nutrição do Sistema Único de Saúde, outras homenagens foram publicadas. A professora Marília Leão contou um pouco da trajetória do professor Ivan através do texto:
Estávamos no ano de 1987. O Brasil acabava de sair dos anos duros da ditadura militar. Iniciávamos a redemocratização do pais. Lutávamos por uma nova Constituição Federal. Muitos atores sociais militavam no movimento da Reforma Sanitária, que previa uma reforma radical no campo da Saúde, com a criação do Sistema Único de Saúde (SUS). Nesse ano eu já trabalhava no INAN – extinto órgão de Alimentação e Nutrição do Ministério da Saúde – quando me avisaram que havia sido selecionada para fazer um curso com um professor “francês” que vinha ao Brasil, especialmente para nos ensinar temas relevantes sobre o planejamento em Alimentação e Nutrição. O curso aconteceu na Universidade de Brasília (UnB), durante um frio mês de julho. Os alunos, na sua maioria jovens profissionais, vieram de todo o Brasil, selecionados pelo seu potencial comprometimento com a Nutrição Social. A turma era multiprofissional: tinha economista, médico, enfermeiro, químico, estatístico, jornalista, assistente social, dentre outros.
O curso teve duração de um mês e era intensivo, em horário integral. O professor Ivan Beghin, que afinal era belga, era super rígido com horários e com a programação. Ele controlava tudo, com muito rigor, mas sempre com humor e polidez impecáveis. O curso tinha como conteúdo a metodologia formulada pelo Beghin para fazer o planejamento de ações e programas locais de Alimentação e Nutrição. Esta metodologia fazia muito sentido para todos nós e facilitava a compreensão da realidade de uma determinada comunidade, além de propor instrumentos que facilitava a vida dos planejadores de políticas públicas. O que mais chamava a atenção era que a metodologia partia do problema local, da realidade encontrada em determinada na comunidade e não de pressupostos teóricos ou acadêmicos. Me recordo que os conteúdos do curso iam sendo apresentados de maneira concatenada, um passo a frente só poderia ser dado se vencido determinadas metas. Mas o mais interessante e que tudo era muito dinâmico e motivador. A turma toda se engajou muito na proposta do curso e se formaram laços até hoje bem atados. Naquela época, vivíamos tempos muito difíceis na economia brasileira, nossos salários eram muito baixos e rapidamente corroídos pelas altas taxas de inflação. Praticamente não tínhamos recursos nem governança para mudar o pais e “fazer a revolução” na rapidez que queríamos. Não havia espaço político e nem tradição para o planejamento estratégico das políticas públicas. Por esta razão o curso era muito “relevante e pertinente” para todos nós.
Para falar a verdade, eu não me lembro muito dos detalhes da metodologia do Beghin, a não ser da famosa técnica do “modelo causal” que eu usei inúmeras vezes e ainda continuo usando para compreender as relações e condicionalidades de situações adversas, ou para fazer diagnósticos de uma comunidade. Em todas as pesquisas populacionais em que trabalhei usei o modelo causal, seja para planejar o estudo, seja na elaboração do plano tabular para análise dos dados. Mas a principal lição do Beghin penso que não foi esta. Foi a sua história de vida como pai de família, médico, nutrólogo, mestre dedicado e sua disposição para colaborar efetivamente com países em desenvolvimento no campo da Nutrição e Saúde Pública. Beghin nunca adotou uma atitude “colonizada” ou “eurocentrada” para com os seus alunos. Pelo contrário, quando estava no Brasil ele se esforçava para internalizar os costumes e a cultura brasileira, a ponto de falar um impecável português, e pasmem! muitas vezes ele corrigia os nossos desvios gramaticais. Muitos dos seus ex-alunos e alunas brasileiros ainda formam uma rede de profissionais competentes que seguem na liderança de programas e instituições. Suas trajetórias, sem dúvida, receberam sementes e agua da fonte do Beghin.
O Prof. Ivan Beghin faz parte da nossa história e deve ser celebrado como um grande líder e colaborador do campo da segurança alimentar e nutricional do pais.