As organizações da sociedade civil Associação Brasileira de Assistência à Mucoviscidose (ABRAM) e Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS (ABIA) através de seu Grupo de Trabalho Sobre Propriedade Intelectual (GTPI) estão desencadeando uma campanha para o acesso ao medicamento Trikafta, bem mais eficaz do que outros já incorporados no SUS e que pode ajudar um número grande de pacientes que sofrem de Fibrose Cística (Mucoviscidose).
Segundo o Registro Brasileiro de Fibrose Cística (REBRAFC) com dados de 2020, existem no Brasil 6.112 pacientes registrados, dentre os quais 2.600 seriam elegíveis para o tratamento com esse medicamento. A maior parte dos pacientes registrados é jovem, na medida em que a doença, além de crônica, apresenta altas taxas de letalidade. Trata-se, pois, de um problema de saúde pública merecedor de toda a atenção das autoridades sanitárias.
O ivacaftor/tezacaftor/elexacaftor (Trikafta) obteve registro na Anvisa em 2022 e, em 2023, a farmacêutica norte-americana Vertex Pharmaceuticals, detentora da propriedade intelectual do produto submeteu o medicamento à avaliação da CONITEC, com um preço proposto de R$ 888 mil por paciente/ano. Considerando todos os pacientes brasileiros elegíveis para o tratamento com o Trikafta (e o objetivo é que todos os elegíveis possam ter acesso ao medicamento), é muito provável que não seja considerado custo-efetivo pela comissão. Caso venha a sê-lo, gerará uma despesa anual potencial da ordem de R$ 2,6 bilhões.
A Abrasco considera que os caminhos que se colocam para o enfrentamento dessa doença com a utilização do medicamento são dois.
O primeiro é um acordo com a Vertex , para uma redução significativa do preço de seu produto para uso exclusivo no SUS que torne a sua utilização custo-efetiva e propicie a sua incorporação. Proposta mais do que razoável, haja vista que desde a sua aprovação pelo FDA, em 2019, a Vertex já faturou mais de 17 bilhões de dólares com vendas do Trikafta em todo o mundo. Há notícias de que a empresa está fazendo acordos desse tipo com países pobres (Low-Income), o que não é o caso do Brasil que, conforme essa tipologia do Banco Mundial, é considerado um país de renda média alta (Upper Middle-Income). Vale lembrar a estratégia da empresa Gilead que em 2015 autorizou 11 fabricantes indianos de genéricos a produzir o princípio ativo do seu medicamento para Hepatite C, Sovaldi, (sofosbuvir) e autorizou a sua venda para 91 países Low-Income, dentre os quais não estava o Brasil.
Já houve, entre nós, vários precedentes de acordos dessa natureza, como por exemplo em 2010 a redução do preço e a centralização da compra do medicamento Glivec (Mesilato de Imatinibe) produto de eleição no tratamento da Leucemia Mieloide Crônica.
O outro caminho é explorar a possibilidade de um licenciamento para o uso do medicamento no SUS. Esse caminho pode explorar dois trajetos. O primeiro deles é o licenciamento voluntário realizado pela Vertex para um laboratório no país mediante um acordo de transferência das tecnologias envolvidas no produto contra a garantia do mercado público por um período determinado
O outro trajeto é o do licenciamento compulsório, mecanismo inscrito nas flexibilidades do acordo TRIPS e na nossa legislação. Para que essa medida seja desenvolvida, é necessária a existência de um ou mais medicamentos genéricos disponíveis para comercialização. Neste caso, a resposta é afirmativa, pois a empresa argentina Gador desenvolveu, produziu e registrou em seu país um produto genérico (Trixacar), cujo preço está em torno de R$ 150 mil por paciente/ano. O caminho argentino que levou ao desenvolvimento e produção do medicamento genérico foi antecedido pela não concessão das patentes envolvidas pelo seu órgão regulador de propriedade intelectual. Portanto, entendemos que as autoridades sanitárias brasileiras devem apoiar as iniciativas em curso no sentido de reverter a concessão da patente do Trikafta no Brasil.
Seja qual for o caminho a seguir, é importante que um primeiro passo seja dado, que é uma declaração formal de interesse público do medicamento por parte do Ministério da Saúde. Essa declaração é uma demanda da ABRAM e da ABIA/GTPI em manifestação já enviada à ministra da saúde e ao secretário da SCTIE.
Entretanto, as duas organizações da sociedade civil demandam também que a CONITEC recomende a incorporação do Trikafta para uso no SUS nos termos em que a empresa está propondo. A Abrasco entende que a incorporação deve ser realizada apenas após a redução significativa do preço do medicamento, em consonância com o que tem sido feito em outros países, seja por qualquer dos três trajetos aqui sugeridos – acordo de redução unilateral, licenciamento voluntário ou licenciamento compulsório.
Finalmente, a Abrasco propõe que devam ser realizadas gestões junto ao INPI visando oposição à concessão da patente para que o desenvolvimento de um genérico brasileiro possa ser efetivado.