Cesar Victora encerrou a décima edição do Congresso Brasileiro de Epidemiologia pontuando suas preocupações com os caminhos da pesquisa no Brasil e com os avanços que deixaremos de ter: – “Tudo o que construímos como cientistas, durante décadas, está ameaçado”. Victora também chamou atenção para a lealdade que os pesquisadores devem ter com a população: – “Que financia muitos estudos no país. Nesta época que a tentação de emigrar é muito grande, nós temos que resistir e continuar construindo a nossa Saúde Coletiva”, pediu.
No próximo dia 26, Victora receberá o reconhecimento mais importante no que diz respeito à melhoria da saúde no mundo. O prêmio “Gairdner de Saúde Global”, lhe será entregue no Canadá. “Dinossauro da Abrasco que esteve em todas as edições do Congresso de Epidemiologia”, como ele próprio brincou no início da apresentação, Victora explicou que o título da sua conferência “De Pelotas para o mundo” se confunde com a sua trajetória: – “Sei que o título da minha palestra é pretencioso, vou tentar explicar, quando eu terminei a medicina, em Porto Alegre, disse aos meus professores que queria fazer pesquisa no interior e todo mundo achou que eu estava maluco. Eu estava mesmo… Mas vejam, neste momento crítico da ciência e da saúde, e diante de tantos jovens aqui reunidos, onde tudo o que construímos como cientistas durante décadas está ameaçado, quero que este título pretencioso sirva de motivação, de que é possível fazer pesquisa e influenciar políticas globais, trabalhando aqui no Brasil, inclusive num lugar remoto e interiorano como Pelotas”, contou Cesar. O epidemiologista gaúcho abordou quatro conjuntos de pesquisas durante a conferência na tarde de 11 de outubro, em Florianópolis: aleitamento materno exclusivo; criação da curva de crescimento, estratégia dos primeiros 1000 dias e ainda as iniciativas que não renderam o impacto esperado.
A lealdade do pesquisador
“Quando comecei minha pesquisa na década de 80, quase todas as crianças recebiam água e chá desde o início da vida, meus filhos foram alimentados assim.
Eu estava voltando do meu doutorado em Londres, pago pelo contribuinte brasileiro e acho que isso deve ser muito bem lembrado aqui: estudei a vida toda em escola pública, depois em universidade pública e fiz um doutorado pago pelo contribuinte brasileiro. Devemos ter esta lealdade com a população que financiou muitos estudos no país, e nesta época que a tentação de emigrar é muito grande, nós temos que resistir e continuar construindo a nossa Saúde Coletiva”, pediu Victora.
As reconhecidas pesquisas sobre nutrição materno-infantil, iniciadas nos anos 1980, comprovaram hoje que o aleitamento exclusivo, sem água ou chás, reduz em 14 vezes o risco de morte infantil por diarreia e em 3,6 vezes por doenças respiratórias. O Brasil é atualmente a maior referência na valorização do leite materno. Após adotar a recomendação, conseguimos reduzir o índice de mortalidade infantil em pelo menos 45%, a prática tem prevenido a morte de 800 mil crianças anualmente em todo o planeta. O aleitamento exclusivo é atualmente recomendado por organismos internacionais de saúde e voltados para a infância, como a Organização Mundial da Saúde e Fundo das Nações Unidas para a Infância.
Ao longo de sua conferência, Victora contou a trajetória do seu grupo de pesquisa desde 1982 em Pelotas, como professor da universidade federal recém-criada ali – a Universidade Federal de Pelotas: – “Junto com o pediatra e amigo Fernando Barros, criamos no país uma das primeiras coortes de nascimento, nome dado aos estudos que acompanham por longos períodos a saúde das pessoas nascidas em um lugar num certo ano. Temos mostrado que é possível mudar a amamentação e nós mostramos como, o Brasil mostrou que é possível. O grande mérito dessa mudança é o esforço de toda a sociedade junto com a Saúde Coletiva na remoção das barreiras contra a amamentação”, explicou.
Ainda sobre amamentação, Cesar recomendou a leitura da Série Amamentação no Século XXI, composta por dois artigos, e que agora conta com versão em português. O material nasceu de uma parceria com a revista The Lancet a Revista Epidemiologia e Serviços de Saúde.
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Os primeiros 1000 dias do resto das nossas vidas
O segundo ponto da conferência abordou a importância dos mil dias: os 270 da gestação mais os 730 dos dois primeiros anos de vida, ou seja, mil dias. As pesquisas de Victora comprovam que os cuidados nos primeiros 1000 dias de vida previnem não só a mortalidade infantil, mas também várias doenças crônicas da vida adulta: – “A gestação e os primeiros dois anos são a base mais crítica que vão definir a saúde do ser humano. Porém hoje sabemos que depois destes dois anos temos que nos preocupar com o outro lado da moeda: a alta prevalência de obesidade infantil e é aí que temos que tomar medidas que o Brasil não tomou até hoje, falo do controle da propaganda voltada para crianças e de novas taxas para a indústria de ultraprocessados. Outros países já tiveram coragem de fazer, o México já teve coragem, mas no Brasil o lobby industrial no Congresso tem impedido este tipo de ação. Vamos taxar mais, a coca-cola tem que custar uma fortuna!” pediu Victora.
Prematuros de pobres e ricos
No fechamento de sua conferência, Victora pontuou suas preocupações: – “Nesta última fase da minha carreira, minha preocupação maior é simplificar. Quero simplificar e conseguir conversar com gestores, tentar trabalhar com eles todos estes dados epidemiológicos na prática do dia a dia. Atualmente nosso grande problema é o alto índice de nascimento pré-termo. Nós temos no Brasil uma das maiores taxas de nascimento pré-termo do mundo. E a questão não é simples, não é uma epidemia só. Nós temos pré-termo de pobre e pré-termo de rico, são duas epidemias ao mesmo tempo. A de pobre se deve à ausência de pré-natal adequado – embora nós tenhamos uma média de 8 consultas de pré-natal, a qualidade é ruim. O pré-termo de rico envolve outra batalha perdida, a epidemia da cesariana. O Brasil é o segundo país com mais cesarianas, nós só perdemos para a República Dominicana. Cesariana e pré-termo são as duas lutas que precisamos enfrentar e eu espero que esta juventude de epidemiologistas e sanitaristas que estão aqui, se deem conta de que é possível fazer pesquisa boa no Brasil e que estas pesquisas possam resultar em mudanças práticas”, resumiu Victora.