Diante do momento de reconstrução do país, a Abrasco, por meio de seu Grupo Temático em Gênero e Saúde, se posiciona científica e politicamente a fim de contribuir com a retomada de um caminho das políticas públicas democráticas implicadas com a equidade, a dignidade e a justiça social. A palavra “retomada” é usada aqui como reconhecimento a um processo que não se inicia agora – o Plano Nacional de Políticas Públicas para as Mulheres de 2005 1 já reconhecia a violência de gênero, de raça e de etnia como violências estruturais e históricas, que precisam ser tratadas como questão de segurança, justiça e saúde pública. Trata-se, isto sim, de um processo que foi interrompido. Retomá-lo será também um trabalho de enorme desafio e é nesse contexto que gostaríamos de oferecer algumas contribuições.
Os princípios da universalidade, integralidade e participação da comunidade que fazem o Sistema Único de Saúde (SUS) único também no mundo – e o conceito ampliado de saúde que marca e sustenta a sua construção como política de estado – o tornam um espaço privilegiado no Brasil para impulsionar políticas e programas de equidade, justamente por sua capacidade e prática de articular diferentes dimensões para a composição de um arcabouço de direitos que possam dar conta do enfrentamento às desigualdades. Uma vez que as relações de gênero são constituídas e atravessadas por dinâmicas biopsicossociais, econômicas, culturais e estruturais, para que uma política pública produza efetivos avanços na direção da equidade nesse campo, ela precisa ser profundamente transversal e transdisciplinar. Além disso, os estudos interseccionais demonstram que não é possível pensar a equidade de gênero de forma dissociada das equidades de raça e classe.
Finalmente, à luz da produção científica e ativista dos estudos de gênero e dos movimentos sociais de mulheres, feministas e LGBTQIA+, é preciso alargar a dimensão dos/as/es sujeitos/as/es implicados com e impactados por políticas de equidade de gênero (e, especialmente, pela ausência de tais políticas). A partir destas questões, o GT de Gênero e Saúde da ABRASCO aponta para a necessidade de uma política pública nacional no âmbito do SUS:
- intersetorial, abordando os determinantes sociais e econômicos dos problemas de saúde; intrassetorial, mobilizando os diversos órgãos e estruturas do SUS e do Ministério da Saúde, e interministerial, envolvendo os ministérios das Mulheres, da Igualdade Racial, dos Direitos Humanos e da Cidadania e da Educação.
- ancorada em indicadores de desigualdade de gênero, raça e classe e na interseção entre eles,
- que considere o enfrentamento à violência de gênero e ao racismo, a reorganização da divisão sexual do trabalho remunerado e do trabalho reprodutivo, além da defesa da autonomia e da justiça social como elementos indissociáveis da equidade de gênero,
- que produza transformações sociais na vida das mulheres cis, das pessoas trans e não-binárias e também dos homens cis, buscando a construção de relações de gênero mais igualitárias,
- e que, para isso, traduz-se em ações nos campos da promoção e assistência à saúde, vigilância em saúde, relações de trabalho, formação e pesquisa.
Assim, compartilhamos algumas sugestões de princípios e ações na expectativa de contribuir para a elaboração e no fortalecimento de um SUS comprometido com equidade de gênero, na nota técnica “Pela saúde de todas as mulheres: propostas da Abrasco para equidade de gênero na saúde”.
Confira um resumo das propostas:
- Equidade de gênero não é possível sem Estado laico
- Para mudar as relações de gênero é preciso transformar o trabalho de cuidar
- A equidade é antirracista, ou não é equidade
- As Políticas de Saúde não podem confundir saúde das mulheres com saúde materna
- Autonomia e justiça reprodutiva são indissociáveis da equidade de gênero e raça
- O direito à saúde da população LGBTQIA+ precisa ser respeitado
- A equidade de gênero também melhora o direito dos homens à saúde
- Uma política de equidade não é compatível com a precarização das relações de trabalho
Das ações no SUS,promoção e vigilância em saúde:
- É preciso retomar e universalizar a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher (PNAISM) ² , com sua agenda ampla, e na atenção primária, secundária, terciária e quaternária, assegurado o princípio da integralidade da atenção.
- Eliminar barreiras institucionais de acesso aos serviços de saúde, em toda a linha de cuidados, superando hierarquização de prioridades em filas com evidências explícitas de etarismo e capacitismo, e/ou implícitas de racismo, sexismo e LGBTfobia;
- Ampliar o horário de atendimento nos serviços de atenção primária, introduzindo o terceiro turno para melhorar o acesso às/os trabalhadoras/es;
- Instrumentalizar as unidades de saúde da atenção primária para receber com qualidade, espaço e equipe necessária as/os usuárias/os acompanhados de crianças e familiares, cuja responsabilidade pelo cuidado muitas vezes implica barreira de acesso ao serviço.
Relações de trabalho:
- Assegurar o acesso às vagas de trabalho no SUS por concurso ou seleção técnica criteriosa, com garantia de vínculo empregatício como CLT ou estatutário e progressão nas carreiras;
- Implementar cotas sociais e raciais para a distribuição de vagas de trabalho no SUS em todas as esferas profissionais;
- Buscar eliminar todas as formas de discriminação de gênero e raça na progressão, promoção e permanência no emprego;
- Garantir o respeito ao nome social no ambiente de trabalho;
Gestão/participação:
- Assegurar representatividade de gênero e de raça e diversidade no acesso a cargos de direção, chefia e coordenação, contemplando a paridade de gênero e cotas raciais como mecanismos de ação afirmativa;
- Resgatar/instalar conselhos gestores nos serviços de saúde (trabalhadores, gestores e usuárias), com incentivo a paridade de gênero e raça;
- Sensibilizar gestoras/es para a necessidade de providenciar cuidado e acolhimento para as trabalhadoras de saúde vitimas de violência sexual e doméstica, com discrição e sem estigmatizaçao;
- Constituir oficialmente um Comitê Gestor de Gênero e Raça, responsável por implementar o Programa na rotina da gerência e da força de trabalho das três esferas de governo (União, estados e municípios).
Formação:
- Atuar para a reformulação curricular dos cursos de graduação e pós-graduação na área da saúde, com oferta de disciplinas obrigatórias sobre gênero, sexualidade, raça/etnia, geração, deficiência e saúde, contextualizadas na atenção integral às mulheres, garantindo todos os conteúdos da atenção, incluindo atenção ao aborto, nos respectivos projetos pedagogicos.
Pesquisa:
- Fomento à pesquisa no campo de gênero, raça, sexualidade e saúde, contemplando as esferas do trabalho e da família, com o lançamento de editais sobre questões de interesse para o SUS.
Clique aqui para conferir o documento completo.
Para além das contribuições aqui presentes, a Abrasco, por meio de seu GT de Gênero e Saúde, se coloca à inteira disposição para apoiar a formulação e o fortalecimento de políticas que contribuam para a equidade de gênero em âmbito do Sistema Único de Saúde. Convocamos as autoridades políticas e sanitárias, e toda a sociedade, para essa reconstrução. Como pesquisadoras, trabalhadoras e usuárias do sistema de saúde, e cidadãs brasileiras, nosso interesse no sucesso do SUS se confunde também com o sonho de dignidade para todos, sobretudo para todas as mulheres em todas as fases da vida.
Brasil, 8 de março de 2023 – Dia Internacional da Luta das Mulheres
Associação Brasileira de Saúde Coletiva
Referências
¹ https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/pnpm_compacta.pdf
² https://conselho.saude.gov.br/ultimas_noticias/2007/politica_mulher.pdf