Depois de sucessivas desilusões, eis que surge uma esperança, jurídica, para o financiamento da Saúde Pública: a restituição dos royalties do petróleo como recurso financeiro adicional, por decisão liminar na Ação Direta de Inconstitucionalidade no 5.595. Processo foi liberado hoje (12/9) para pauta no plenário do STF.
Breve histórico do financiamento da saúde pública: Quando da promulgação da Constituição em 1988, no artigo que menciona que a saúde é direito de todos e dever do Estado, os constituintes “esqueceram” de dizer de onde viria o dinheiro. Em uma busca constante e incansável de financiamento adequado, apoiadores do SUS foram ao Legislativo e ao Judiciário para salvar não apenas o Sistema Único de Saúde, mas a vida dos milhões de brasileiros.
Somente após doze anos, uma primeira vitória parecia surgir no horizonte. A Emenda Constitucional no 29/2000 iniciou o processo para garantir um valor mínimo a ser aplicado em ações e serviços públicos de saúde. Porém, ela descreveu apenas de onde o dinheiro deveria vir, no caso dos estados e municípios, mas não o valor. No que diz respeito à União foi pior: uma nova lei teria que ser editada. Assim, a busca do SUS por um financiamento adequado, progressivo e justo permaneceu. Foram necessários mais doze anos para que a Lei Complementar 141/2012 fosse aprovada. Ali, finalmente, as fontes e porcentagens de recursos foram estipuladas.
A luz da esperança para o financiamento mais progressivo para o SUS ganhou brilho no ano seguinte com a Lei no 12.858/2013. Pela primeira vez, ela vinculou parte dos recursos auferidos (os royalties) com a exploração de petróleo e gás natural aos gastos sociais do Estado. A regra vale para os contratos de exploração firmados a partir de dezembro de 2012, sob os regimes de concessão, de cessão onerosa e de partilha de produção, exploradas em plataforma. Nestes casos, 25% dos royalties destinam-se à Saúde e 75% à Educação.
Porém, essa luz durou pouquíssimo tempo. Em 2015, no âmbito do “ajuste fiscal” iniciado pelo governo Dilma, o Congresso aprovou a Emenda Constitucional 86. As esperanças de um financiamento mais adequado para o SUS foram pelo ralo. A garantia de que 15% da Receita Corrente Líquida (RCL) da União seriam destinados à Saúde Pública foi escalonada ao longo de 5 anos. Pior: os royalties do petróleo – que a princípio seriam uma receita adicional ao sistema – foram transformados em uma das fontes para chegar aos mesmos 15%. Ainda assim, era uma receita pequena, mas com grande potencial de crescimento.
O resultado foi uma aplicação baixa em saúde para o ano de 2016. Nesse momento, mais uma vez os defensores do SUS1 foram buscar ao Judiciário a defesa de recursos financeiros apropriados. Protocolaram a Ação Direta de Inconstitucionalidade – ADI — 5.595. Há poucas semanas, em 31 de agosto, veio um sinal de vitória. O ministro Ricardo Lewandowski, do Supremo Tribunal Federal (STF) deferiu medida liminar suspendendo os efeitos de artigos da Emenda Constitucional (EC) 86, que tratavam do escalonamento e inserção dos royalties no cálculo do mínimo a ser aplicado em saúde. A liminar foi emitida para evitar que o orçamento de 2018 para a saúde seja elaborado com recursos inferiores e para que o valor devido seja restituído em 2017, de acordo com artigo 25 da Lei Complementar 141.
Os efeitos da liminar na ADI 5.595: Com a suspensão dos artigos 2º e 3º da Emenda Constitucional 86, por meio da liminar, prevalece o artigo 1º. A União passa a ter que aplicar em saúde 15% de sua Receita Corrente Líquida, mais os royalties do petróleo, como recurso adicional. Ocorre que isso teria que valer desde quando a EC 86 passou a vigorar, tendo efeito no valor que foi aplicado em saúde em 2016. O valor que havia sido aplicado, correspondente a 13,2% da Receita Corrente Líquida (RCL), saltaria para 15% da RCL – mais os 25% dos royalties do petróleo, obtidos contratos firmados a partir de dezembro 2012. Significa que, só em 2018, deverá ocorrer uma complementação de R$ 2,52 bilhões ao orçamento da Saúde. Ao invés de R$ 105,85 bilhões, o setor passará a receber R$ 108,38 bi.
Para 2017, o orçamento do SUS deverá também ser complementado, de forma adicional, com os 25% dos royalties do petróleo. Isso representa R$ 21 milhões a mais a ser investidos em Saúde em 2017, conforme apurado em 09/09/17 no Portal Siga Brasil. O valor ainda pode aumentar, até o fim do ano.
Vale ressaltar a potencialidade que os royalties do petróleo representam para a Saúde, como um recurso adicional ao longo dos anos: de R$ 7,2 milhões em 2016, passa-se a R$ 21 milhões em 2017 — um crescimento de 192% em apenas um ano.
De volta à perversidade do “Teto dos Gastos”: Entretanto, assim como ocorreu em toda a história do financiamento do SUS e de todas as políticas públicas promotoras de direito, existe o risco de a liminar ter seu brilho ofuscado. E isso pode ocorrer devido à EC 95.
Como existe um limite para os gastos sociais, um aumento nos recursos para a Saúde, com o adicional dos royalties, pode representar menos recursos ainda para outras políticas públicas essenciais. A questão é que a saúde das pessoas é extremamente influenciada por diversos outros setores, como saneamento básico, habitação, acesso à água potável, educação. O resultado é que o “teto dos gastos” pode inviabilizar a melhora da saúde da população por cortar recursos financeiros para outras políticas, mesmo com mais recursos direcionados ao SUS. Essa questão foi inclusive tratada pelo ministro Lewandowsky. Diz ele, em sua liminar: “alterações que impliquem retrocesso no estágio de proteção dos direitos e garantias fundamentais não são admissíveis, ainda que a pretexto de limites orçamentário-financeiros”, em consonância com o princípio de não retrocesso social. Isso quer dizer que, a cada avanço na proteção dos direitos, não é possível voltar atrás, inclusive no seu financiamento, mesmo com a justificativa de dificuldades financeiras.
Uma forma de garantir um adequado financiamento do SUS, sem afetar outras políticas públicas, seria a ministra do STF, Rosa Weber, declarar inconstitucional o teto para saúde e educação. Ela tem a oportunidade de fazê-lo por meio da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 5.658, da qual é relatora. Ainda mais adequada seria a revogação da EC 95, por sua inviabilidade técnica e humanitária. Será outro passo importantíssimo. No momento, considerando que em 12 de setembro o processo da ADI 5595 foi liberado para entrar na pauta do plenário do STF2, é essencial agir em defesa da liminar. Há uma brecha, finalmente, para defender que os direitos sociais não podem retroagir e garantir um financiamento mais adequado à Saúde.
+ Publicado originalmente no site Outras Palavras. Confira aqui a publicação original
* Grazielle Custódio David é mestre em Saúde Coletiva pela Universidade de Brasília – UnB e especialista em Direito Sanitário pela Fiocruz e Bioética, também pela UnB. É assessora política do Instituto de Estudos Socioeconômicos – Inesc e integrante do Conselho Consultivo do Centro Brasileiro de Estudos da Saúde – Cebes.
Notas:
1– Importante destacar entidades da reforma sanitária como CEBES, ABRASCO, ABRES, IDISA, outras; Conselho Nacional de Saúde, em nome do Francisco Funcia; acadêmicos; técnicos do Executivo, em nome da Fabíola Vieira e Rodrigo Benevides; membros do judiciário, MP, TC, em nome da Dra. Élida Graziane; indivíduos e membros de movimentos sociais e organizações da sociedade civil; e especialmente trabalhadores e usuários do SUS.
2– Informação publicada no artigo de 12/09/17 da Dra. Élida Graziane Pinto, procuradora do Ministério Público de Contas de SP, que trata dos argumentos jurídicos em defesa da liminar cedida na ADI 5595. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2017-set-12/contas-vista-stf-reconhece-direito-custeio-adequado-direitos-adi-5595