Nas primeiras horas de governo, o presidente Jair Bolsonaro editou uma medida provisória e um decreto que esvaziam as principais atribuições da Fundação Nacional do Índio (Funai). Ele deslocou para o Ministério da Agricultura a prerrogativa de delimitar terras indígenas e de quilombolas, e de conceder licenciamento para empreendimentos que possam atingir esses povos. Sobre a Medida Provisória 870 (MP/870) e a continuidade dos processos demarcatórios, a Abrasco ouviu a antropóloga Maria Manuela Carneiro da Cunha, para o Especial Abrasco – ABA sobre a questão indígena no Brasil.
Manuela Cunha é Antropóloga, professora titular aposentada da Universidade de São Paulo – USP, professora emérita da Universidade de Chicago, membro da Academia Brasileira de Ciências.
Confira a opinião de Manuela Cunha:
“Sob a alegação inverossímel de racionalizar, o novo governo colocou a formalização de terras indígenas e o licenciamento ambiental de projetos que incidem sobre elas na alçada do Ministério da Agricultura. Teria sido mais sutil não tê-lo feito e colocado um defensor do agronegócio à cabeça da Fundação Nacional do Índio, como foi feito com o Ministério do Meio Ambiente. Colocar as demarcações no âmbito da Agricultura é tornar explícito que os interesses imediatistas de setores menos ilustrados do agronegócio têm precedência sobre os direitos constitucionais dos índios às suas terras. Quando candidato, o presidente já tinha apregoado essa sua posição, mas como nos têm repetido membros do governo, as posições do candidato poderiam não coincidir com as do presidente. O que surpreendeu foi a presteza dessa medida, na MP 870 editada já no primeiro dia do novo governo, seguida no segundo dia pelo Decreto 9667 arts 11 e 14.
O governo, sem maiores ponderações, atropelou a Constituição e não se deu sequer ao trabalho de embasar e dourar suas decisões. Cabe agora ao Supremo Tribunal Federal – STF responder a uma Ação Direta de Inconstitucionalidade a ADI 6062 com seu pedido de medida cautelar.
Ao longo de muitos anos, a bancada ruralista tentou achar o momento político propício para votar uma emenda constitucional, a PEC 215, transferindo as demarcações de terras indígenas do Executivo Federal, onde sempre estiveram, para o poder legislativo. Sempre se soube que os poderes locais – executivo como legislativo – são estruturalmente antagônicos aos direitos de minorias. É o que justifica a escolha do âmbito federal e do executivo, que em tese têm certa distância das pressões locais.
Se a PEC215 tivesse conseguido passar, as demarcações de terras indígenas teriam sido paralisadas sine die. De certa forma, colocar a demarcação de terras indígenas no âmbito do Ministério da Agricultura é uma tentativa canhestra de conseguir de uma penada o que a PEC215 tanto desejava alcançar. Paira ainda a ameaça ventilada pela Ministra Tereza Cristina (DEM-MS) de submeter a regularização das demarcações de terras indígenas e quilombolas a um conselho interministerial que incluiria os setores minerários e de energia, reunindo assim mais outros setores que têm conflitos com direitos indígenas e de quilombolas.
Deslocar também o que sobra da Funai – agora amputada de sua mais crítica responsabilidade, as terras indígenas – do Ministério da Justiça para um Ministério da Mulher, Familia e Direitos Humanos é retirar aos povos indígenas a proteção do que é agora um super-ministério que poderia ser um contrapeso à influência do agronegócio.
Os órgãos que protegiam da cobiça generalizada pelo que resta de terras públicas no Brasil como o Instituto Nacional da Colonização e Reforma Agrária – Incra, a Fundação Palmares e a Funai perderam status e atribuições. O Incra, que trata de assentamentos da Reforma Agrária e da formalização de terras de quilombo, está agora na Secretaria Especial de Assuntos Fundiários do Ministério da Agricultura – Seaf, a mesma que passou a tratar de terras indígenas. É ela agora que, para todos efeitos, comandará a política fundiária do Brasil. Foi nomeado para chefiá-la um presidente licenciado da UDR, a União Democrática Ruralista, que sem representar o agronegócio como um todo, incarna talvez seu setor mais conservador. Nabhan Garcia, que dirige a Seaf, propala que fará revisões de demarcações, o que pode afetar as demarcações que ainda não chegaram à etapa final da homologação. O processo completo inclui várias etapas que vão da identificação à delimitação seguidas da demarcação, regularização fundiária e registro. Costuma-se usar o termo “demarcação” para sinalizar o processo em geral.
Segundo levantamento do Instituto Socioambiental – ISA, baseado nos dados do Diário Oficial da União, as terras indígenas ainda não homologadas representariam um terço de todas as demarcações de terras indígenas. Particularmente vulneráveis são os povos indígenas isolados, que até agora eram protegidos contra contatos impostos de fora. O Brasil tem o maior número de povos indígenas isolados: são frequentemente povos que fugiram após um primeiro contato desastroso com uma frente de colonização e que se isolam voluntariamente. O contato forçado promovido em décadas passadas e que provocou a morte de milhares de indígenas foi felizmente substituído por uma muito elogiada política de proteção e respeito que remonta ao Marechal Rondon. Até agora, ela foi viabilizada pela vigilância e monitoramento de Frentes de Proteção da Coordenação Geral de Índios Isolados e de Recente Contato, CGIIRC.
Os dois últimos governos foram estrangulando essa política de evitar o contato forçado e proteger os índios isolados pelo sucateamento e falta de recursos humanos, mas não ousaram questionar seu valor. Agora, a Ministra Damares, que comanda Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos declara que pode rever se “a política de isolamento é o melhor para o índio”. Pastora evangélica, ela apoia a pregação do cristianismo e de seus valores aos povos indígenas, ressuscitando no século XXI uma doutrina pela qual a Igreja Católica já se desculpou. Não é por acaso que recentemente um missionário evangélico teve a iniciativa de promover um contato um povo isolado da bacia do rio Purus, os Hi-Merimã.
Essa iniciativa é um exemplo de um estrago muito maior já provocado, antes mesmo do início do novo governo, pelas declarações de campanha do candidato. A afirmação de que não demarcaria mais nem um centímetro de terras indígenas levou ao aumento de violência e de invasões de terras indígenas já inclusive de algumas totalmente regularizadas e desintrusadas com muito esforço.
Lembro-me de que há vários anos, setores do agronegócio apoiaram a demarcação das terras indígenas para conseguirem uma segurança jurídica. Essa segurança é do interesse de todos. A alternativa é uma judicialização generalizada e uma onda de conflitos“.
O Especial Abrasco – ABA sobre a questão indígena no Brasil traz ilustrações do carioca Matheus Ribs. O ilustrador se descreve como um cientista político em formação, um ilustrador da luta política. Ribs constantemente questiona a política, religião, amor, racismo, entre outros polêmicos temas e gentilmente cedeu estas ilustrações sobre a questão indígena.