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Autocrítica e novas práticas acadêmicas e militantes para a defesa da universalidade diante da austeridade

A Constituição Federal de 1988 define a saúde como um direito de todos e o seu sistema, o SUS, como como uma política pública universal, integral e com participação social. Passados quase 30 anos da promulgação da Carta Magna, esses princípios nunca estiveram tão prejudicados. A mesa-redonda “A defesa dos projetos universalizantes como o do SUS diante das políticas de ajuste: estratégias e ações”, realizada na manhã do segundo dia do III Congresso Brasileiro de Política, Planejamento e Gestão em Saúde, reuniu José Gomes Temporão (ENSP/Fiocruz), Renato Tasca (OPAS/OMS) e Mário Scheffer (Abrasco e DMP/FM/USP) para debaterem o atual cenário e apresentarem proposições de superação.

A moderação foi de Arthur Chioro, ex-ministro da saúde e professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), que já na abertura dos trabalhos destacou a importância dessa reflexão. “Ao aprovar a EC 95, o governo Temer instaurou um novo regime fiscal com um ajuste de 20 anos. Nem no furor das décadas de 1980 ousou-se impor a um país ajuste de tamanha magnitude e gravidade. Não é apenas uma questão conjuntural, mas um desmonte do estado democrático de direito”.

Temporão iniciou sua participação analisando como o processo de implementação do SUS foi marcado por contradições que conduziram à atual encruzilhada: ou se efetivar como um sistema universal, integral e equitativo ou se tornar um subsistema voltado à assistência dos mais pobres dentro de uma saúde mercantilizada e controlada por planos e seguros saúde.

Para este enfrentamento, o ex-ministro da saúde e pesquisador aposentado da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (ENSP/Fiocruz) apontou como necessárias ações no plano da macropolítica que promovam uma transição cultural. “Está fortemente disseminada a visão de que o acesso à saúde privada faz parte do processo de ascensão social. Junte também a medicalização das consciências, o que nada mais é do que a incorporação das práticas promovidas pelo Complexo Médico-Industrial em todos os espaços da vida, reforçadas nas publicidades de medicamentos e planos de saúde, que exibem UTIs móveis e centros cirúrgicos de última geração, num verdadeiro processo de deseducação”.

As experiências cotidianas tanto positivas como negativas reforçam narrativas de tom semelhante na sociedade, tanto as apresentadas pela mídia comercial como as defendidas pelos profissionais e movimentos sociais da saúde. Temporão reforçou o papel de se produzir serviços suficientemente bons para aumentar a adesão dos usuários ao sistema. “Não precisamos de mais programas, mas sim de novas políticas e de novos modos de colocar as ações na prática. Precisamos de políticas de comunicação e informação diferenciadas e superar barreiras cognitivas entre os especialistas e o povo”, definiu ele, ressaltando ainda ser necessário sair da visão gerencialista de atendimento e abraçar de fato as redes de atenção e de cuidado. “Temos de mudar o cuidado e o cuidador, e só será possível com processos de trabalho que valorizem o vínculo, construindo uma relação terapêutica singular, uma nova visão do ato de cuidar que integre gestores, profissionais, comunidade, paciente e família”.

O SUS como base de um novo projeto nacional: Vice-presidente da Abrasco e professor do Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (DMP/FMUSP), Mário Scheffer defendeu que o movimento sanitário repense suas práticas e, em conjunto com a sociedade, faça do SUS o centro de um novo projeto nacional. Mas, para isso, são necessárias autocrítica e uma nova postura do movimento sanitário. “A defesa do SUS é pouco cogitada fora da gestão e da Saúde Coletiva. Muitos movimentos tornaram-se distantes, assim como parte expressiva da população, que se afastou das interações sociais. Não convencemos a sociedade de que o SUS é viável. Temos de mostrar que não temos apenas valores, mas também evidencias científicas, base legal, técnica e experiência em como fazer, operar e entregar saúde por meio do SUS. Mas sem apoio da sociedade vai ficar difícil”.

O discurso laudatório comumente ecoado em encontros e congressos, para ele, não cumpre papel nem de diálogo, nem de respeito com os usuários. Pior: nega as extensas filas, os maus tratos, a limitada ação da Atenção Primária e dos serviços de urgência e emergência. “E o que deu errado? O mais evidente foi a falta de criação de uma base sólida para o financiamento, nem mesmo nos momentos de crescimento econômico, quanto mais nos de déficit. Com investimentos de menos de 4% per capita, o SUS nunca será resolvido com os argumentos”, argumentou ele, especialista na investigação sobre a participação do mercado no setor saúde, desenhando o cenário de como o capital vem sendo o grande privilegiado enquanto a Constituição Cidadã é “desnaturada”. “A saúde suplementar cresceu e enriqueceu com ajuda governamental, sem contrapartida para o setor público. Seis empresas do setor movimentam um orçamento igual ao do ministério, com forte feição financeira”, apontou o docente, citando desonerações, subsídios, isenções, deliberações e legislações como o Proad e a aprovação da entrada do capital estrangeiro que só esvaziaram o caráter público e universal do SUS.

Diante do atual estágio, a estratégia sugerida por Scheffer aponta para um esforço programático dos programas de pós-graduação e para mudanças na prática militante. “Não é só criar e disputar narrativas, esse termo da moda, mas de criar evidencias, fortalecer nossos programas nos temas prioritários definidos pela comunidade acadêmica, com uma agenda plural e transparente de pesquisas que revigore a produção científica”, notadamente marcada mais pela fragmentação do que diversidade e que ainda vê repetidas encomendas governamentais voltadas mais para produzir reiterações de certezas do que formular perguntas adequadas, segundo ele. “Não há uma crise abstrata e de agonia, não é um refluxo passageiro. O momento pede a refundação do nosso campo”, disse Scheffer, ressaltando ainda que o debate da ética e de corrupção, mesmo que muitas vezes tratado de forma tortuosa e seletiva, também precisa ser travado no interior do movimento sanitário.

O professor discutiu ainda que os mitos da maioria e da minoria dentro da sociedade brasileira não são como se quer acreditar, mas que podem e devem ser vistos com as lentes da grande política. “Nós somos muitos, somos profissionais, somos usuários, temos voz qualificada, mas somos uma minoria. Uma minoria com dispositivo simbólico imenso, mas que precisa romper o isolamento. Foi a vontade de uma minoria ativa que produziu o saber da Reforma Sanitária, que nos trouxe até aqui e que precisa seguir essa construção”, finalizou Mário Scheffer, convocando o movimento sanitário a redigir para as eleições de 2018 um programa de saúde ‘inédito e nunca feito por candidatos e partidos’, em sintonia e nos termos de uma frente progressista que destaque a universalidade do SUS em primeiro lugar.

Olhares de fora: O debate sobre a universalidade e a sustentabilidade do sistema de saúde não é uma exclusividade do Brasil, como abordou Renato Tasca. Médico italiano, consultor da Organização Pan-americana de Saúde (OPAS/OMS) e um dos responsáveis pela implementação do Programa Mais Médicos, ele trouxe contribuições dos debates travados sobre o National Health Service (NHS), no Reino Unido, e sobre o Servizio Sanitario Nazionale (SSN), na Itália.

“A Câmara do Lordes inglesa compara na abertura do estudo o NHS1 como uma ‘religião’ e no debate lá promovido tentou resolver o difícil desafio de manter o sistema de forma gratuita e sustentável”, ressaltou o convidado, lembrando que em 2018, o NSH completará 70 anos e que também tem sentido a redução do seu financiamento nos últimos 10 anos. “O sistema mais velho do mundo que luta contra o envelhecimento da sua população e para acompanhar de perto o processo e não abrirem mão do que consideram central, será criada uma nova estrutura de monitoramento. A ideia é constituir um think tank sobre a sustentabilidade que promova também a migração das ações de cuidado do hospital para o território. O Brasil está nesse caminho há tempo”.

Na Itália, o SSN já passou por duas grandes reformas em sua lei orgânica, mas sem mudanças nos princípios básicos de universalidade. Um novo estudo aponta a necessidade de revisão de práticas para “salvar” o SSN 2. “Há um esforço de regulação e de valorização de procedimentos baseado em evidências para poder manter o sistema racional, mesmo que seja um tema do qual se fala muito mas pratica-se pouco. Um blogueiro mata uma evidência de Harvard em três linhas”, brincou Tasca, que frisou o combate à corrupção como uma preocupação da gestão italiana, levando à relativo incremento do orçamento. “É forte o pensamento de que, se subfanciar poderia provocar riscos ainda superiores. Essas novas doenças infecciosas que desconhecemos vão impactar como tsunamis se os sistemas de vigilância não estiverem alertas. O Ebola não chegou porque o sistema funciona, e ser eficiente é requisito”.

A necessidade da integração entre a assistência social e a atenção em saúde para acompanhar o envelhecimento populacional e a luta aos grandes vilões da fraude, do desperdício e da má gestão foram destacadas ao final da fala do representante internacional. “Concordo que há uma crise de sustentabilidade e há necessidade de mudanças, mas não podemos ter uma única saída – ou fica como está ou joga-se a toalha. Devemos trabalhar muito nesse congresso, pois daqui pode sair grandes estímulos e evidências para mantermos vivo e forte o SUS, este o sistema que nós da OPAS gostaríamos ter de exemplo para a região”.

1 – HOUSE OF LORDS Select Committee on the Long-term Sustainability of the NHS
HL Paper 151 Report of Session 2016–17 The Long-term Sustainability of the NHS and Adult Social Care. https://www.publications.parliament.uk/pa/ld201617/ldselect/ldnhssus/151/151.pdf
2 – GIMBE. Rapporto sulla sostenibilità del Servizio Sanitario Nazionale 2016-2025. http://www.rapportogimbe.it/Rapporto_GIMBE_Sostenibilit%C3%A0_SSN_2016-2025.pdf

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