A pandemia de Covid-19 tem agravado sobremaneira a já precária situação das populações quilombolas no país, que historicamente enfrentam dificuldade de acesso aos serviços básicos de saúde, infraestrutura sanitária e racismo estrutural1. Durante os debates do Grupo de Trabalho Interinstitucional instituído à partir da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF 742 (GTI-ADPF 742) impetrada pela Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ) em agosto de 2020, tem sido sistematicamente apontado por especialistas que a maior vulnerabilidade desses grupos tem levado a taxas de mortalidade mais altas que a da população em geral, ensejando a decisão do STF de incluir os quilombolas entre os grupos prioritários no Plano Nacional de Operacionalização da Vacinação contra a Covid-19 (PNO).
Segundo o Ministério da Saúde, já foram disponibilizadas aos estados as duas doses da vacina da AstraZeneca/Oxford para o contingente populacional quilombola estimado pelo IBGE2. Conquanto a CONAQ tenha informado diversas vezes ao governo federal que o número apresentado pelo IBGE subestima amplamente o real número de quilombolas no país, a sociedade civil considera que é fundamental garantir que, pelo menos, esse número inicial seja totalmente aplicado na população designada, enquanto se aguarda a disponibilização de mais doses para que seja plenamente cumprido o mandato da ADPF 742.
O governo federal indicou no PNO que seriam priorizadas para imunização aquelas pessoas que têm maior risco de exposição ao vírus e maior mortalidade3. Enquanto é fundamental que os municípios avancem com a vacinação nas comunidades, conforme preconizado pela ABRASCO4, pela Associação Brasileira de Antropologia (ABA)5 e previsto no PNO, é preciso reconhecer também que os quilombolas enfrentam diversas vulnerabilidades, seja em seus territórios, a maioria ainda não oficialmente demarcados, seja fora deles, para onde precisam se deslocar em busca de emprego, renda, educação, serviços de saúde, prestação de serviços às organizações comunitárias e mesmo proteção contra ameaças dos que tentam invadir e tomar suas terras, configurando um grupo no maior risco potencial de infecção e evolução para formas graves e óbitos onde quer que se encontre.
Lamentavelmente, a não realização do recenseamento demográfico de 2020, que seria o primeiro a incluir as populações quilombolas, faz com que seu real contingente permaneça ignorado pelas autoridades, embora suas necessidades sejam amplamente conhecidas das associações que os representam, que nem sempre encontram apoio em suas demandas ao executivo. No entanto, entendemos que a falta de informação sobre a população não deva significar seu abandono pelo Estado, uma vez que os dados levantados até o momento apontam que os quilombolas têm pelo menos o dobro de chance de morrer ao ser infectado pelo SARS-CoV-2 que a população em geral6
Assim como as populações indígenas7, os quilombolas também se veem afetados pelos conflitos agrários e pela insegurança alimentar e nutricional em seus territórios e continuam a não ter o acesso à terra garantido, conforme determinado na Constituição Cidadã de 1988. Por outro lado, embora fora dos seus territórios, em sua maioria absoluta temporariamente, os quilombolas não deixam de manter seus vínculos com sua terra natal, suas tradições e de serem reconhecidos como tal por suas associações, devendo ter os mesmos direitos daqueles que conseguem permanecer em seus territórios. Em termos comparativos, o Ministro Luiz Roberto Barroso, no âmbito da ADPF 709, já determinou a extensão imediata das ações do Subsistema de Atenção à Saúde Indígena (SASI-SUS) às populações indígenas em terras não homologadas e em áreas urbanas, de forma a que não haja barreiras de acesso ao SUS uma vez que, especialmente no caso das populações indígenas e quilombolas, a localização geográfica dos indivíduos não guarda relação direta com a identidade étnica e os riscos sanitários7.
No mês em que o Brasil supera a triste marca de 500 mil mortos pela Covid-19, centenas de famílias quilombolas também já foram tocadas pela fatalidade. Este grupo, que já apresenta indicadores epidemiológicos piores do que os da população em geral,não pode continuar a ser vítima do desrespeito estatal8. A corrente fragilidade ou dificuldade de pactuação e comunicação sobre as ações de vacinação entre os níveis federal, estadual e municipal deve ser urgentemente superada para garantir a atenção à saúde a população quilombola, onde quer que esta se encontre, cabendo ao governo federal o papel de coordenador e indutor de políticas que promovam a equidade e o fim do racismo institucional.
Infelizmente, até o momento ainda não houve uma ampla campanha de informação sobre as medidas não farmacológicas de combate à Covid-19 e a importância da vacinação para os quilombolas, que sofrem constantemente com as fake News9 e a falta de transparência em alguns municípios sobre o seu calendário vacinal e os insumos especificamente disponíveis para eles
Em face ao cenário atual no qual a pandemia ainda se encontra fora de controle no país e os insumos para imunização não estão disponíveis para toda a população, e diante da negativa de alguns municípios de atender às demandas das associações, recomendamos que todas e todos os quilombolas, independentemente de seu local de residência, sejam imediatamente incluídos na campanha de vacinação. Nesse processo, é fundamental que não sejam criados entraves burocráticos através de exigências documentais, e que seja garantida a segunda dose respeitando os prazos estabelecidos no PNO.
Vacinas para todos e todas já!
Brasília, 21 de junho de 2021
Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco)
GTI em Defesa das Garantias e dos Direitos dos Povos Quilombolas e Contra o Racismo da Defensoria Pública do Estado do Pará (DPE)
ST Saúde da População Negra da Associação Brasileira dos/as Pesquisadores/as Negros/as (ABPN)
2 Ministério da Saúde, Secretaria de Vigilância em Saúde, Departamento de Imunização e Doenças Transmissíveis, Coordenação-Geral do Programa Nacional de Imunizações, Oitavo Informe Técnico, 10ª Pauta de Distribuição.
5 http://www.portal.abant.org.br/2021/05/20/recomendacoes/
8 Arruti, José Maurício et al. O impacto da Covid-19 sobre as comunidades quilombolas. Informativos Desigualdades Raciais e Covid-19, AFRO-CEBRAP, n. 6, 2021.9https://abrasco.org.br/gtracismoesaude/2021/03/04/epidemia-de-noticias-falsas-atrapalha-a-imunizacao-contra-a-covid-19-artigo-de-hilton-p-silva-e-edna-araujo/