Tudo indica que em algum momento do ano que vem teremos uma vacina contra o SARS-CoV-2. Isso posto, um novo e robusto conjunto de decisões está na mesa. Qual vacina, qual população e qual estratégia da campanha são as principais novas perguntas.
A Associação Brasileira de Saúde Coletiva – Abrasco – considera que devem ser adotadas todas as vacinas que forem registradas pela ANVISA e incorporadas pelo SUS mediante análise da CONITEC. Haverá vacinas registradas (seguras e eficazes) cujo preço não recomendará a sua incorporação. Algumas vacinas em desenvolvimento antecipam preços de US$ 50 ou US$ 60 por dose. Duas doses em 50 milhões de pessoas custariam 2,5 bilhões de dólares. Impagáveis pelo SUS.
Em decorrência da atuação humanitária da OMS, tudo indica que haverá mais de uma vacina a quatro ou cinco dólares por dose, pelo menos enquanto durar a pandemia. Entendemos que serão essas as que o SUS fornecerá. Sobre o fim da pandemia, aparece outra pergunta: quem decide o momento do fim da pandemia? A resposta mais lógica sugere que isso deve caber a quem declarou o momento de seu início – a OMS. Não fará sentido que o fim da pandemia seja definido por uma empresa desenvolvedora de vacina. Neste caso, o que foi estabelecido em bases humanitárias seria substituído pelo realismo necrófilo do mercado.
O que o Ministério da Saúde está pensando sobre a questão de “quais vacinas”? Até este momento, o compromisso é comprar a vacina produzida pela empresa AstraZeneca, ora em fase avançada de ensaio clínico. Decisão correta, haja vista o fornecimento dessa vacina estar vinculado a um contrato com Biomanguinhos/Fiocruz que, além do fornecimento, inclui cláusulas de transferência de tecnologia. Mas o fato é que há outra vacina, de procedência chinesa, cujo desenvolvimento está em passo similar ao da já citada e cujo fornecimento é contratualizado com o Instituto Butantã e que inclui também mecanismo de transferência de tecnologia. E, curiosamente, o Ministério da Saúde reluta em decidir compra-la também, o que é incompreensível nos marcos de uma decisão calcada em razões sanitárias. Duas ou mais vacinas podem ser estrategicamente necessárias, não só porque poderão apresentar eficácias variadas em geral e em grupos etários específicos, como porque podem implicar em diferentes desafios operacionais (doses e rede de frio). Além disso, a demanda de vacinação na população brasileira pode exigir múltiplas frentes de produção e distribuição de vacinas.
Qual população deve ser vacinada e em que ordem? Se considerarmos a persistência de ondas sucessivas da COVID-19, é necessário pensar em vacinar toda a população. Mas, independentemente disso, há que definir prioridades. De preferência baseadas em critérios sanitários (riscos diferenciais de transmitir, adoecer e morrer). Nesse ponto, parece haver uma convergência mundial acerca dos segmentos prioritários, ao que parece seguida pelo Ministério da Saúde. Pessoal de saúde na linha de frente no combate à doença, pessoal de serviços de emergência, tais como defesa civil e corpo de bombeiros, idosos, pessoas com algumas comorbidades nas quais há impacto comprovado de piora de prognóstico clínico (diabéticos, hipertensos, obesos, entre outras). O número de doses a ser comprada deve ser tributária dessa contabilidade, e não da contabilidade do Ministério da Economia.
A estratégia da campanha apresenta problemas não-triviais que merecem ser enfrentados com serenidade. Em primeiro lugar, deve haver uma campanha nacional, coordenada pelo Programa Nacional de Imunizações, sempre em associação com as unidades da federação e os municípios. A esse respeito, consideramos indispensável a participação do Câmara Técnica que está assessorando o PNI na organização, acompanhamento e avaliação da campanha. A demora do MS em decidir adotar a vacina CORONAVAX/Butantã, pode fazer com que o Estado de São Paulo decida moto próprio fazer a sua campanha, vacinando seus cidadãos e os de outas unidades federadas que resolverem comprar essa vacina. Isso será uma tragédia, em primeiro lugar porque fará naufragar um necessário planejamento nacional, provocando perda de eficiência. E, em segundo lugar, porque ferirá profundamente o Programa Nacional de Imunizações, o mais bem sucedido programa de prevenção de doenças do país, que coordena as campanhas nacionais de vacinação há mais de 45 anos.
A existência de várias vacinas concomitantes em uma mesma campanha, em particular de vacinas com duas ou mais doses, coloca problemas logísticos de alguma complexidade, muito embora plenamente solucionáveis. O desafio é fazer com que o máximo de pessoas nos grupos populacionais definidos seja vacinada em tempo adequado com as duas doses e também que não tenha acesso a doses de outra vacina.
Outro aspecto sobre a estratégia da campanha vem à luz após a declaração do diretor do DATAPREV, órgão responsável pela coordenação e organização das bases de dados do SUS em nível federal. Ele declarou que está sendo cogitada a necessidade de apresentação do CPF de cada pessoa para ser vacinada. A razão dessa decisão seria a de evitar desperdício, realmente existente, otimizando a distribuição de vacinas. Isso também facilitaria o controle do número de doses recebidas por cada pessoa e da utilização da mesma vacina na aplicação da segunda dose.
A apresentação de CPF atende a critérios de eficiência interna da campanha, mas deixa de lado algo que deveria ser a dimensão mais valorizada da mesma, que é a sua eficiência em termos de cobertura. Essa decisão não leva em conta os “invisíveis” da população brasileira, cuja existência e dimensionamento foram tornados muito mais nítidos no curso da pandemia. Não possuir um CPF válido não se distribui homogeneamente no território nacional e um dos indicadores dessa “invisibilidade” é a ausência de documentação civil, na qual o CPF talvez seja o mais prevalente. Os números são imprecisos e há estimativas de milhões de pessoas nessa condição. Finalmente, essa exigência tende a fazer com que as pessoas fiquem um tempo muito maior na fila de vacinação, o que não é correto do ponto de vista sanitário. Um bom indicador desse fato foram as filas na porta das agências da Caixa Econômica Federal nos tempos iniciais do auxílio emergencial.
Finalmente, entendemos que, além do anúncio da obrigatoriedade de ser vacinado(a), será necessário que a campanha seja objeto de intensas e bem elaboradas medidas de divulgação e propaganda.