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Vagas promessas para a crise da Saúde – matéria de O Globo

Foto: Pexels/Pixabay

Na edição deste domingo, 12 de outubro, o jornalista José Casado, escreveu sobre os problemas da Saúde para a Série Eleições 2014, na reportagem intitulada ‘Vagas promessas para a crise da Saúde’. O texto mostra os números do Tribunal de Contas da União, e diz que a ‘crise na saúde torna Judiciário a ‘segunda porta’ de acesso ao SUS’. A professora Ligia Bahia, membro do Conselho Diretivo da Abrasco, contribui com o debate da matéria ‘O país campeão das preocupações com saúde tem um SUS subfinanciado e mal gerido, e é o segundo maior mercado de planos privados do mundo”, constata Ligia Bahia, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Confira a reportagem na íntegra:

Na última terça-feira, um homem foi levado ao setor de emergência do Hospital Getúlio Vargas, em Teresina. Diagnóstico: traumatismo craniano. Pouco depois, a seis quilômetros dali, outro homem foi carregado ao pronto-socorro do Hospital de Urgências. Diagnóstico: traumatismo na medula óssea. Médicos de plantão informaram as famílias sobre a situação crítica. E recomendaram paciência. Nos dois hospitais públicos, as unidades de terapia intensiva estavam lotadas. Inconformados, os parentes recorreram à Justiça, que expediu ordens para internação imediata. Os médicos se recusaram a retirar pacientes das UTIs para abrir as vagas exigidas. Na manhã de quarta-feira passada, um oficial de justiça apareceu nos hospitais com escolta policial e mandados de prisão contra os médicos. Eles não foram encontrados.

Cenas assim viraram rotina 4.870 hospitais que atendem ao Sistema Único de Saúde (SUS). A crise no sistema público de saúde, do qual dependem oito entre dez brasileiros, está no topo das prioridades do eleitorado — há mais de dez meses pesquisas demonstram que ampla maioria (60%) considera a saúde o maior problema nacional, como registra o Ibope. No entanto, o debate sobre Saúde acabou reduzido a vagas promessas de candidatos no primeiro turno da eleição presidencial.

A crise se agrava e o Piauí é caso exemplar. Estado dos mais pobres, possui 3,1 milhões de habitantes dos quais 95% dependentes do SUS. Suas iniciativas na gestão de saúde estão restritas às tentativas de governar filas: nos pronto-socorros, onde espera-se no mínimo dois dias para uma simples radiografia, e nos hospitais lotados da capital, onde desembarcam doentes trazidos do interior em avião alugado (R$ 150 mil mensais).

No Hospital de Urgência de Teresina morreram 754 pessoas nos primeiros 90 dias deste ano. Dessas, 580 faleceram no pronto-socorro. Em maio, fiscais foram despachados de Brasília para a capital piauiense. O relatório, concluído dias atrás, é eloquente: num único dia foram encontrados 130 doentes “sem qualquer identificação”, em cima de macas desforradas e aglomeradas “nos corredores e debaixo da escadaria”, em ambiente insalubre caracterizado pelo “tumulto”.

Sinais do agravamento da crise na saúde se espalham por tribunais de todo o país. O Judiciário virou uma “segunda porta” de acesso ao SUS, intervindo na administração das filas para internação ou acesso a medicamentos. Os gastos do Ministério da Saúde por conta de sentenças judiciais subiram 1.400% nos últimos seis anos.

Na raiz da crise estão o desequilíbrio no financiamento e a desigualdade na distribuição da infraestrutura e dos serviços entre regiões — informa o Tribunal de Contas da União. Há uma década o governo federal bancava 59% das despesas na saúde pública, os estados aportavam 19% e os municípios pagavam 22% da conta. Desfez-se o equilíbrio baseado no poder de arrecadação tributária.

O governo federal reduziu sua parte, que hoje corresponde a 45% dos gastos com saúde. A maior parcela foi transferida aos estados (26%) e às prefeituras (29%), embora oito de cada dez municípios dependam de transferências de recursos da União até para pagar os salários dos próprios funcionários.

Houve aumento substancial nos tributos ao longo da década, mas isso não resultou em aumento de investimentos. Nos últimos três anos o orçamento do SUS restringiu os gastos por habitante ao patamar de R$ 2,5 por dia. Consequência da corrosão financeira é o congelamento da remuneração dos serviços prestados ao sistema público. “A tabela de pagamentos do SUS está defasada há 20 anos”, reclama Luiz Teixeira Jr., secretário de Saúde de Nova Iguaçu, cidade de 800 mil habitantes.

“Não há como sustentar maternidades municipais se o SUS paga R$ 600 por cada parto, enquanto na rede privada custa R$ 2 mil” — ele acrescenta. “As pessoas estão parando de nascer em Búzios, Queimados, São João do Meriti e em Japeri. Agora, nascem em Nova Iguaçu. Aqui o número de partos subiu 30%, porque nas cidades em volta fecharam as maternidades públicas.”

A degradação da infraestrutura pública realça as desigualdades. Ao analisar dados sobre o atendimento à população que depende do SUS, no período de 2000 a 2009, auditores do TCU se surpreenderam. A média de internações na rede pública no Nordeste (65,8) foi um terço inferior à dos estados do Sul (85,6). Em Sergipe foi praticamente metade (49,3 por grupo de 1.000 pessoas) do registrado no Paraná (95,4).

Agravam-se também as diferenças entre a população dependente do sistema público e a parcela que possui plano de saúde com cobertura hospitalar. Na década, a média de internações entre clientes do setor privado (137 internações por grupo de 1.000 habitantes) foi quase o dobro dos “sem plano”, clientela do SUS.

“O país campeão das preocupações com saúde tem um SUS subfinanciado e mal gerido, e é o segundo maior mercado de planos privados do mundo”, constata Ligia Bahia, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Teixeira Jr., secretário de Saúde de Nova Iguaçu, desabafa: “É muito difícil estar desse lado do balcão como gestor público. Se você ‘amarelar’, pessoas morrem”. Administradores de 87 hospitais públicos entrevistados por fiscais do TCU no ano passado viraram gerentes de filas. O ambiente caótico comoveu os auditores. No Amapá, eles anotaram: “Paciente que tinha sofrido Acidente Vascular Cerebral (AVC) aguardava há cinco horas, deitado em um banco no corredor, a chegada de médico neurologista.” Na Paraíba: “Em alguns hospitais, havia dificuldade para transitar entre os leitos”. No Rio Grande do Sul: “Pacientes em macas na recepção”.

Impera a escassez, de esparadrapo a profissionais — médicos e, principalmente, enfermeiros. Há excesso de burocracia: cada licitação leva de 90 a 180 dias. E, a cada ano, cresce o déficit nacional de leitos para internação ou cirurgias. Isso aumenta o tempo de permanência dos pacientes na emergência, onde a fila cresce mais rapidamente. O governo, porém, optou por reduzir a quantidade de leitos públicos. Entre 2010 e agosto de 2013, foram fechados 11.576 leitos de internação, calcula o TCU. Na média, foram suprimidos 12 leitos por dia nos primeiros três anos da administração Dilma Rousseff. No período, a rede privada aumentou em 5,4% sua quantidade de leitos.
O governo apostou na queda do fluxo de pacientes aos hospitais, a partir de investimentos em serviços de emergência , construção de redes de abastecimento de água e de saneamento básico em áreas urbanas. Não aconteceu. Nos últimos três anos, o governo federal anunciou 23.196 projetos do gênero. Nos dois programas voltados à emergência de saúde, a execução de obras ficou na média de 9%, até abril passado. Das 15.095 Unidades Básicas de Saúde anunciadas, somente 2.057 foram concluídas (13,6% do total). Das 495 Unidades de Pronto Atendimento projetadas apenas 23 saíram do papel (4,6%). Os resultados foram melhores em obras de redes urbanas de água (38,5%) e de saneamento (17,2%).

Há um comportamento político “bipolar” em relação ao SUS, “entre sua glorificação e desprezo”— acha Ligia Bahia, da UFRJ. “Candidatos à presidência falam em mais recursos para a saúde e em mais médicos especializados nas unidades de pronto-atendimento, mas nunca explicam como isso vai ser feito. Ora, diante do caos que está aí, o que as pessoas querem é saber como vai ser a saúde pública no próximo governo.”

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