Dentre as nações signatárias da Convenção-Quadro para o controle do Tabaco, o Brasil é um dos países que mais se destacam na implementação das medidas preconizadas por este tratado multilateral, o primeiro conduzido pela Organização Mundial de Saúde (OMS) e que fez dez anos de sua redação final em 2013. No entanto, segundo Vera Luiza da Costa e Silva, a cada avanço conquistado há uma resposta imediata da Indústria, seja com argumentos falaciosos de uma suposta defesa dos agricultores, seja pelo ingresso de ações com o intuito de paralisar atividades fiscalizadoras e regulatórias. É o caso da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 4874), impetrada pela Confederação Nacional da Indústria (CNI), que questiona a Resolução da Diretoria Colegiada da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (RDC Anvisa 14/2012), que proibiu a importação e a comercialização de cigarros que contenham aditivos de sabor. A ADI ainda se encontra em trâmite no Supremo Tribunal Federal e os aditivos seguem liberados. “Essa ação questiona toda a legitimidade da Anvisa em regulamentar qualquer tipo de produto, o que gerará um caos se vier a ser aprovada”.
Suas posições vão ganhar ainda mais peso e relevância a partir de 20 junho, quando assumirá, em Genebra, a chefia do secretariado da Convenção-Quadro. Mestra em Administração de negócios da Saúde pela Copead/UFRJ e doutora em Ciências da Saúde pela ENSP/Fiocruz, a pesquisadora trabalha com o tema há 30 anos e atualmente coordena o Centro de Estudos sobre Tabaco e Saúde da Escola Nacional de Saúde Pública (Cetab/ENSP/Fiocruz),. O fato de ter dirigido por cinco anos o programa Iniciativa sem Tabaco, da mesma OMS, a qualificou para a seleção da chefia do Secretariado. Mesmo com suas credenciais, disputou a vaga com outros cinco profissionais e passou por um rigoroso processo seletivo, composto de uma entrevista com o Bureau da Conferencia das partes do Tratado das seis regiões da OMS e dois membros da Direção Geral da Organização, além da apresentação de proposta de gestão e uma arguição oral. O resultado foi divulgado no início de janeiro.
Entre a finalização das atribuições no Cetab/ENSP e a preparação da mudança para a Suíça, Vera Luiza recebeu a Comunicação da Abrasco e falou dos desafios que vê pela frente, entre eles o papel que a pesquisa científica vem relegando sobre a prevenção às drogas legais, mas que pode e deve ser ampliado: “Os temas do tabaco e do álcool têm sido marginalizados nos congressos científicos, competindo com outras seções ditas “mais atraentes”. A Abrasco tem um importante papel nesse debate, que aparece cada vez mais enviesado na lógica de construção do sistema de saúde”.
Abrasco: Mais de dez anos se passaram da redação final da Convenção-Quadro. Como a senhora avalia os avanços na luta contra o tabagismo neste período?
Vera Luiza: Há um consenso maior no mundo de que é preciso controlar o consumo do tabaco como primeira maior causa isolada de mortalidade e o segundo fator de risco evitável, atrás somente da hipertensão. Já existem vários países que avançaram no estabelecimento de ambientes livres de fumo, algo que não era realidade em 2003. O uso de pictogramas nos maços de cigarros e o banco de dados com as imagens de advertência de diversos países já são uma realidade.
Abrasco: Quais países se destacam na adoção das políticas de controle do tabaco?
Vera Luiza: O país que mais implementou medidas no mundo foi a Turquia, seguida pelo Brasil, República Democrática do Irã e Panamá. Foram estas as nações que realizaram aumento de impostos e preços, aplicaram as advertências sanitárias, adotaram a proibição do fumo em lugares fechados, além da propaganda, promoção e patrocínio de produtos do tabaco e oferecem serviços públicos para a cessação da dependência.
Abrasco: Como o Brasil particularmente se encontra neste cenário?
Vera Luiza: O país caminhou muito, mas quanto mais avançamos, mais a indústria se opõe. A lei que proíbe o fumo em lugares fechados por todo o território nacional foi aprovada no final de 2011, mas ainda não teve sua regulamentação definida. Essa mesma lei veta a publicidade no ponto de venda, permitindo apenas a exposição do produto. A regulamentação da diretoria colegiada da Anvisa (RDC 14/2012), que programava a suspensão do uso de 120 aditivos no tabaco, não entrou em vigor por conta de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 4874) movida pela Confederação Nacional da Indústria (CNI). A ação ainda aguarda julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF). Essa ADI questiona toda a legitimidade da Anvisa em regulamentar qualquer tipo de produto, o que gerará um caos se vier a ser aprovada. Mesmo assim, houve uma queda de mais de 50% do consumo entre os brasileiros, uma das reduções mais expressivas em todo o mundo. Trabalhos recentes já mostram o impacto dessa conquista na redução das taxas de mortalidade por doenças cardiovasculares e câncer de pulmão.
Abrasco: Que outras ações a indústria tem tomado para garantir seu mercado?
Vera Luiza: Vemos o jogo de xadrez mudar a lógica das jogadas, mas prosseguir com as mesmas peças: a indústria manipulando governos que, por sua vez, não implementam o artigo da Convenção que destaca o papel dos signatários em evitar a interferência da indústria do tabaco nas políticas de saúde pública. É cada vez maior a utilização de acordos internacionais de comércio para prejudicar os países. A Phillips Morris utilizou um acordo bilateral entre o Uruguai e a Suíça para impedir medidas sobre o tamanho das advertências sanitárias nos maços de cigarro vendidos no país vizinho. O mesmo tem acontecido em relação à Austrália, que adotou a venda de maços genéricos (foto ao lado) e foi questionada por outros países nos foros da Organização Mundial do Comércio (OMC).
Abrasco: A senhora já afirmou que a Convenção-Quadro foi uma das primeiras ações da OMS a criar regras para a saúde em âmbito internacional. Por que esse protagonismo se deu com um tema tão espinhoso?
Vera Luiza: Há várias questões que entraram nessa formulação. Primeiro, por ser a maior causa isolada de morbidade e mortalidade no mundo. E também porque países como Canadá, Finlândia, Noruega e Suíça tentaram resolver esse controle em âmbito nacional, mas foram vencidos pelas ações de marketing transfronteiriço das empresas e pela força do mercado ilegal. Isso foi identificado pelos próprios governos, com a ajuda da sociedade civil, e passaram a utilizar o poder constitucional da OMS, um organismo intergovernamental, para desempenhar essa missão. Era preciso criar instrumentos legais para fazer imposições. Dessa forma, a adoção da Convenção-Quadro permitiu o uso de um tratado legalmente vinculante do qual os países se tornam partes, responsabilizando-se no confronto das estratégias da Indústria multinacional de tabaco.
Abrasco: Há o costume de “departamentalizar” o debate entre as drogas no Brasil, separando cigarro, álcool e drogas ilícitas. Tal atitude não atrapalha a compreensão de que há um mesmo grupo de questões relacionadas? Ou é uma forma mais efetiva de atacar cada problema?
Vera Luiza: Acho que essa condução acontece por conta da complexidade dos temas e, principalmente, porque há abordagens desafiadoras para esses dois grupos de substâncias. Enquanto as drogas legais têm o direito de serem divulgadas e terem seus preços alterados para a indução do consumo, ou seja, se aproveitam de uma normatização social para estimular o lucro das indústrias; a abordagem para as drogas ilegais resume-se à diminuição da oferta, e não ao controle da demanda. No entanto, na medida em que se caminha para a proibição do uso de aditivos e de ações de marketing para as drogas legais, penalizando indústrias e consumidores pelo não cumprimento de leis, e se discute a regulamentação das outras substâncias, como vem acontecendo em particular com a maconha, ficamos próximos a um lugar de fronteiras tênues e borradas. Vamos chegar a um momento no qual veremos além das drogas isoladamente, avançando para as relações complexas de consumo dos seres humanos com substâncias causadoras de dependência química e regulamentando o mercado de forma rigorosa para evitar a indução ao consumo.
Abrasco: Como a sociedade civil e sociedades científicas, como a Abrasco, podem auxiliar nas discussões sobre o controle do tabaco?
Vera Luiza: Os temas do tabaco e do álcool têm sido marginalizados nos congressos científicos, competindo com outras seções ditas “mais atraentes”. O problema das drogas lícitas é sempre abordado pela medicalização, enquanto há várias medidas prévias para o seu enfrentamento. Desde 2001, por exemplo, não há uma campanha nacional de desestímulo ao consumo do álcool e do tabaco. A aprovação da lei que proíbe a exposição de campanhas nos pontos de venda ajuda muito mais do que receitar remédios. Mas sabemos que o sistema é cruel e acaba medicalizando tudo. A Abrasco tem um importante papel nesse debate, que aparece cada vez mais enviesado na lógica de construção do sistema de saúde. Temos de investir em educação, capacitação e outras formas de prevenção, e não apenas em remédios e em ações de média e alta complexidade.