No último sábado (21), o jornal O Estado de S. Paulo trouxe uma ampla matéria atualizando então o número de 18 óbitose abordando aspectos para a redução da curva de evolução da Covid-19. Assinada pelo jornalista Tulio Kruse, a matéria ouviu autoridades do governo federal e pesquisadores, dentre eles, o vice-presidente da Abrasco Naomar de Almeida Filho.
No texto da reportagem, foi destacada o alerta de Naomar sobre a subnotificação de casos e o destaque da qualidade da Epidemiologia no país. “O Brasil tem uma das epidemiologias mais bem desenvolvidas do mundo. Depois de Estados Unidos e Reino Unido, estamos nessa faixa de competência junto a países europeus que agora estão no epicentro da pandemia.” Ressaltou, no entanto, a dificuldade de comparação dos dados da epidemia no Brasil com outros países.
Ex-reitor das universidades federais da Bahia e do sul da Bahia (UFBA e UFSB), atualmente professor visitante do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (IEA-USP), Naomar cedeu à Comunicação da Abrasco a íntegra de suas respostas ao jornal, na perspectiva de ampliar a divulgação de mais olhares sobre a situação do coronavírus no papis. Clique e acesse a matéria publicada no original e, abaixo, as respostas de Naomar às perguntas do jornalista nas quais aponta caminhos para uma melhor compreensão e resposta à pandemia e faz uma contundente análise das ações do governo federal. “Parece que esse governo fechou questão em minimizar a pandemia, ao mesmo tempo em que tenta transformar em espetáculo uma crise histórica da humanidade. É muita irresponsabilidade. Por causa disso tudo, a sofrida sociedade brasileira poderá pagar um alto preço. Mas isso será cobrado deles, porque saúde é política”
Pergunta: O aumento de 904 para 1128 casos hoje segue a tendência de alta rápida. Se a taxa de aumento dos casos confirmados passar a subir de forma mais lenta, por exemplo, por quantos dias seria necessário acompanhar para dizer que é uma tendência de crescimento menor, por exemplo?
Naomar de Almeida Filho: Precisamos de dados transparentes em tempo real. O sistema de notificação usa um modelo de alimentação de dados por lotes, consolidados inicialmente em municípios e nos Estados. As universidades públicas e institutos de pesquisa, e aí destaco os da Fiocruz, têm toda a expertise nesse campo. Alguns grupos de epidemiólogos brasileiros já estão em campo para contribuir. Vários atuam nas redes de vigilância epidemiológica e muitos têm grande experiência em grandes bases tipo big data e em análise de dados dinâmicos. O Brasil tem uma das epidemiologias mais bem desenvolvidas do mundo. Depois de Estados Unidos e Reino Unido, estamos na mesma faixa de competência de países europeus que agora estão no epicentro da pandemia. Com essa rede de pesquisadores composta e coordenada, posso estimar que precisaríamos de três a quatro pontos da curva para avaliar tendências de incremento, estabilidade ou queda. Isso quer dizer três a quatro dias. Mas também pode ser calculado em tempo real, contanto que as flutuações sejam consideradas.
Pergunta: E o que é mais importante para prestar atenção nos dados, uma vez que os casos confirmados estão subnotificados?
Naomar de Almeida Filho: Recomendo que rapidamente se realize um estudo epidemiológico, tipo fast-track, ágil e objetivo, para estimar os subconjuntos de referência populacional da morbidade pela COVID-19. O que chamamos de microindicadores de morbidade, internos à população afetada por um problema de saúde como a infecção pelo coronavírus SARS-CoV-2, são muito úteis para planejamento e alocação de recursos. Servem bem para orientar medidas de controle, prevenção e também operação do sistema de cuidado em saúde. Risco, morbidade, letalidade, virulência e patogenicidade são conceitos elementares da Epidemiologia. Por exemplo, letalidade é um conceito distinto de mortalidade. Matematicamente são razões de conjuntos e subconjuntos. Letalidade tem como denominador número de casos da COVID-19, o que inclui todos os casos, e mortalidade tem como denominador a população de onde provêm os casos. Um estudo com esse desenho pode emergencialmente estimar coeficientes de letalidade, virulência e patogenicidade para a população brasileira. Aí deixaremos de depender de análises de riscos feitas em outros países, com perfis demográficos totalmente distintos, em outros contextos assistenciais. Teremos um conhecimento técnico mais apurado sobre a forma como a pandemia se apresenta no Brasil. Realmente a subnotificação enviesa o denominador do coeficiente de letalidade. O objetivo principal e imediato desse rapid assessment será evidentemente estimar a subnotificação. Para termos um panorama nacional, esse estudo deve ser feito em diferentes regiões, certamente priorizando os epicentros internos da pandemia no Brasil.
Pergunta: O estado de SP estima que, dos 459 casos confirmados, há 30 na UTI. O número de leitos no País preocupa?
Naomar de Almeida Filho: Certamente que preocupa. Mesmo antes da pandemia tínhamos um déficit de capacidade instalada em UTIs em todo o território brasileiro. Era um déficit grande, agravado pela brutal desigualdade de disponibilidade no que se refere a classes sociais. Essa situação se agravou demais com o desfinanciamento do SUS nos últimos anos e o viés de privatização dos sistemas públicos de saúde, educação e proteção social. É claro que não se trata somente de quantitativo bruto de leitos e sim de capacidade operacional desses leitos. Isso inclui disponibilidade de equipamentos tipo respiradores e equipes treinadas para fazer as UTIs funcionarem otimizadas. Tem se falado muito da previsão de falta de máquinas. Isso é grave e preocupante, com certeza, mas penso que a questão de pessoal de saúde qualificado para o SUS é ainda mais séria. Uma equipe capacitada para prestar cuidados intensivos, médicas, enfermeiras, técnicas, pessoal de apoio, não se forma em dias ou semanas. A pandemia pode revelar que também temos um apagão de profissionais de saúde.
Pergunta: Em quais medidas a política de Saúde precisa se concentrar nesse momento, que ainda é inicial na alta que teremos?
Naomar de Almeida Filho: As autoridades sanitárias do Brasil têm falado muito em UTIs, insumos e equipamentos, referindo-se ao que nós sanitaristas chamamos de cuidados de alta complexidade ou nível quaternário de atenção. Isso é super importante para salvar vidas, especialmente em grupos de risco, considerando a evolução clínica da doença nos casos graves. Mas do ponto de vista de controle da epidemia, precisamos focar no bloqueio das cadeias de transmissão do SARS-CoV-2. As estratégias chamadas de mitigação, sem distanciamento social generalizado, não serão eficazes para reduzir o impacto da pandemia. Para achatar a curva epidêmica, como está se falando, a ponto de reduzir ao máximo os danos sociais e epidemiológicos, será preciso recorrer a estratégias chamadas de supressão. Isso quer dizer drástica redução do contato social, com medidas complementares de descontaminação permanente. Há várias modelagens teoricamente robustas e consistentes entre si que corroboram essa visão. Sei que isso implica desafios de logística, comunicação e coordenação entre política pública e mobilização popular, agravados nesses tempos de fake news, redução do Estado e perda de credibilidade dos governantes e das instituições. Infelizmente, frente à crise, o governo federal está dando sinais cada vez mais preocupantes e ambivalentes, no limite da irresponsabilidade. O Ministro da Saúde, que aparentemente tem maior conexão com a realidade e revela algum grau de confiança nas ciências, encaminha medidas orientadas por evidências e projeções científicas. Mas o Presidente da República, seu núcleo familiar, a corte palaciana, alguns ministros de perfil medieval, seus representantes no Congresso, desmentem seguidamente a autoridade sanitária. Ridicularizam a ciência e os profissionais e pesquisadores da saúde, tensionam as relações sociais e institucionais, fazem tudo para reduzir a radicalidade necessária da estratégia de contenção dos riscos. Agora mesmo, estão hostilizando prefeitos e governadores e desrespeitando a comunidade internacional. Parece que esse governo fechou questão em minimizar a pandemia, ao mesmo tempo em que tenta transformar em espetáculo uma crise histórica da humanidade. É muita irresponsabilidade. Por causa disso tudo, a sofrida sociedade brasileira poderá pagar um alto preço. Mas isso será cobrado deles, porque saúde é política.