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Visibilidades negras: entre conquistas e armadilhas


A língua, a escrita, as ideias, a dor – toda forma de expressão é uma inscrição, um sulco profundo marcado pelos indivíduos no tecido do tempo. No entanto, cabe aos vencedores a operação de ressaltar, reformar e apagar tais marcas e definir o que é a História, num jogo de visibilidade e invisibilidade registrado em livros, filmes e agora meios eletrônicos. Negros e negras vivenciam tais operações desde que se entendem como gente e, mas só entendem seus perversos mecanismos quando se descobrem como detentores de uma origem que não é a dos vencedores. Hoje, séculos depois da diáspora negra, passadas décadas de construção de novas narrativas, de direitos negados e conquistados, cientistas, pesquisadores e estudantes negros e negras refletem sobre os caminhos para a conquista de espaço, visibilidade e estratégias de reconhecimento e de valorização social de suas trajetórias, tanto individuais e coletivas.

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Para muitos, é no espaço universitário o primeiro momento real de confronto e percepção dos apagamentos. “Consigo visualizar no dia a dia da universidade o reflexo de uma sociedade racista e desigual, onde a academia acaba se tornando uma porta de entrada muito distante para nossa população. No entanto, é direito nosso ocupar instituições que historicamente negaram a presença dos negros. Eu, como graduanda de enfermagem e mulher negra, sinto que trabalhar com saúde da população negra é a única coisa que me faz permanecer na graduação e amar a profissão que escolhi”, analisa Cláudia Rodrigues de Oliveira, graduanda em Enfermagem do Centro Universitário Ritter dos Reis – UniRitter (Porto Alegre-RS).

A percepção dessa diferença atravessa diversos níveis de inserção no espaço acadêmico: “Como docente percebo claramente como o racismo é perverso e impede a mobilidade e ascensão de pessoas negras justamente no ambiente acadêmico onde é esperado que a universalidade seja exercida e a diversidade estimulada. Minha experiência como docente negra de cursos de graduação e pós graduação em Saúde Coletiva tem me mostrado o quanto fico distanciada dos meus pares a medida que ascendo na minha carreira profissional. Recentemente passei pela experiencia de estar coordenadora de um programa de pós graduação e pude ver claramente, nas reuniões do fórum de coordenadores de programas de pós graduação em saúde coletiva”, retrata Edna Maria Araújo, professora Titular do Departamento de Saúde da Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS), coordenadora do Núcleo Interdisciplinar de Estudos sobre Desigualdades Sociais em Saúde (NUDES), associada Abrasco e integrante colegiado do Grupo Temático Racismo e Saúde (GT Racismo/Abrasco) e filiada a Associação Brasileira de Pesquisadores Negros (ABPN).

Edna teve a oportunidade de fazer uma parte da formação do doutorado no exterior (o famoso “sanduíche”) em 2006 e pode perceber que, apesar da população negra norte-americana ser proporcionalmente muito menor em relação à população branca, a presença de jovens negros nas universidades, em cursos da área da saúde, é bem mais evidente. “Outra percepção que tive é que enquanto no Brasil o debate ainda gira em torno da legitimidade ou não do sistema de cotas, nos EUA já é perceptível como esta política tem contribuído para a mobilidade social da população negra, muito embora o percentual dos que alcançaram esta mobilidade, através do acesso à educação de nível superior, ainda está aquém do que é esperado”, completou.

Olhar bem diferente sobre o espaço universitário norte-americano traz Carla Ramos. Nascida no subúrbio carioca e com formação graduada e pós-graduada em Antropologia (IFCS/UFRJ), passou no concurso para professora da Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA) em 2011 e há quatro anos cursa o doutorado no departamento de estudos africanos e da diáspora africana da Universidade do Texas, em Austin. Apesar da grande vida cultural do campus, a realidade global do conservadorismo tem nesse estado norte-americano um dos ranços mais arraigados.

“O Texas reúne o maior número de núcleos da Ku Klux Klan em atividade de todo o país, e que faz com o lugar seja conhecido como o mais ‘racista dos EUA’, segundo pesquisa recentemente divulgada pela mídia local. Então eu estou neste lugar profundamente complexo, nessa paisagem que assustadoramente branca, construída na base de um forte processo de gentrificação que redefinindo a história local nos termos dos supremacistas brancos, tão fortemente celebrados, principalmente após a eleição de Donald Trump. Agora, eu sou estudante de doutorado num departamento que abre possibilidades para a produção de um pensamento negro, por intelectuais e ativistas negros, que propõe uma releitura da modernidade a partir de outras epistemologias e cosmologias negras. Mas tudo requer um atento olhar, pois essas categorias também podem ser armadilhas montadas para eliminar a possibilidade real da nossa experiência nesse espaços, porque também estão fortemente atreladas a uma noção de mercantilização e, mais uma vez, de objetificação de corpos e epistemologias negras inspirados ou influenciados pelo modelo do complexo universitário estadunidense. Se você perguntar o que eu levo para o Brasil dessa experiência, retornarei com algo ainda mais forte que já trouxe comigo, que é esta convicção do “assalto”, de tomada desses espaços acadêmicos em coalizão com meus parentes quilombolas e indígenas; num movimento de ocupação, atuando no interior dos mesmos, e ao mesmo tempo mantendo um olhar e distanciamento crítico deles”, diz Carla.

A afirmação de leituras negras e outras cosmologias deve valer também para o universo disciplinar da Saúde, para Mirani Barros, nutricionista e mestre em Saúde Coletiva pelo Instituto de Medicina Social (IMS-UERJ). “É notória a invisibilidade preta quando se fala em protagonismo científico ou acadêmico. Autores clássicos e que muito contribuíram para a compreensão dos pretos em África e dos pretos diaspóricos, suas relações e produções sociais em diversos campos, como Cheik Anta Diop, Marimba Ani, Geroge james, Achille Mibembe, Molefi Assanti, Franz Fanon, Audre Lorde, Bell Hooks, Kimberlè Crenshaw, Ângela Davis, Abdias Nascimento, ou os nacionais contemporâneos, como Renato Nogueira, Muniz Sodré, Fernanda Felisberto, Joel Rufino dos Santos entre outros, não alcançam luz necessária na academia brasileira. Muito timidamente começam a penetrar os estudos interseccionais e pós-coloniais, mas ainda não compõem nossas bibliotecas e nossas escolhas consensuadas para instrumentalizar debates e análises. Sem dúvida, isso gera impacto na forma como a academia brasileira retrata pretos e pretas, ainda sob as lentes do colonizador. É urgente para nós, enquanto pesquisadores da Saúde Coletiva, sobretudo, no momento de franca retração que vive o Brasil e América Latina, nos atentarmos para os potenciais negados nesse movimento de exclusão. Necessitamos enfrentar esse racismo estrutural que se transpõe institucional, vislumbrando uma ciência mais abrangente e ousada. É uma mudança de paradigma que bate à porta e não podemos mais tardar em recebê-la”, analisa Mirani. 

Na perspectiva de ampliar leituras e temas, o Grupo Temático Racismo e Saúde (GT Racismo/Abrasco) surgiu de pesquisadores, gestores, profissionais de saúde e lideranças de movimentos sociais participantes de uma oficina realizada em 2003, em Brasília, durante o 7º Congresso Brasileiro de Saúde Coletiva, ganhando maior organicidade a partir dos últimos anos. Segundo seu documento-guia, as pesquisas desenvolvidas pelo GT Racismo/Abrasco estão em consonância com a Agenda Nacional de Prioridades de Pesquisa em Saúde da População Negra – A magnitude e dinâmica dos problemas relacionados a saúde da população negra; estudos da questão racial no Brasil, seus impactos nas relações sociais e implicações sobre o processo saúde doença; situação de saúde das populações negras vivendo em comunidades remanescentes de quilombos; Análise epidemiológica da morbimortalidade por doenças genéticas e por doenças agravadas pelas condições de vida; Estudos multidisciplinares sobre Doença Falciforme; Contribuições das manifestações afro-brasileiras, parteiras e benzedeiras na promoção da saúde e a avaliação de políticas, programas, serviços e tecnologias são os principais temas das pesquisas que estão em desenvolvimento.

“A grande novidade trazida pelo GT é considerar que o Racismo é um determinante social em saúde e que ele estrutura toda a sociedade”, ressalta Luis Eduardo Batista, líder do grupo de pesquisa Saúde da População Negra e Indígena do Instituto de Saúde (IS/SMS-SP), do grupo de pesquisa Educação, Territórios Negros e Saúde da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e do colegiado do GT Racismo/Abrasco. “O movimento da Reforma Sanitária Brasileira sempre teve as desigualdades de classe social como o principal demarcador das iniquidades. A produção científica que o novo Grupo Temático Racismo e Saúde, da Abrasco, aponta é considerar que o racismo é um determinante social em saúde estrutural em toda a sociedade e somente na interseção entre classe social, gênero, raça, etnia, geração e sexualidade que é possível entender a realidade do processo saúde-doença-cuidado. Fazer esse debate é um grande desafio” avalia Batista. Os caminhos para a visibilidade estão abertos e não podem mais ser apagados.

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