Assim como a participação de Gulnar Azevedo, que proferiu a conferência “A Saúde do Trabalhador e os Sistemas de Acesso Universal – Alma-Ata, SUS, NHS e Canadian Health Care”, outras abrasquianas e abrasquianos, como Marco Akerman (GT Promoção da Saúde e Desenvolvimento Sustentável); Ana Cristina Strauss, Simone Oliveira e Wanderlei Pignati (GT Saúde do Trabalhador), também participaram da Conferência Pan-Americana de Saúde do Trabalhador e Ambiental, promovida pela Associação Nacional de Medicina do Trabalho (ANAMT Brasil). Todos destacaram a importância da Saúde Coletiva em dialogar com outros campos do conhecimento em saúde e de ressaltar o papel do SUS e das políticas públicas inclusivas e universalistas.
A Comunicação da Abrasco aproveitou a oportunidade e conversou com Pignati, professor e pesquisador do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal do Mato Grosso (ISC/UFMT), que compôs a mesa do simpósio “Setor Produtivo: Trabalho Rural”, no qual também participaram representantes do Canadá, da Costa Rica e EUA. O abrasquiano falou do cenário da vigilância em saúde no meio rural, da importância de discutir os atuais limites e usos indiscriminados de agrotóxicos e fertilizantes e provocou sobre o valor da vida, convidando à reflexão de quais custos devem balizar as escolhas da nossa sociedade.
Abrasco: Qual é o cenário da vigilância em saúde no campo?
Wanderlei Pignati: A vigilância em saúde do trabalhador rural é bastante incipiente. Se a vigilância na cidade, tanto nas fábricas e nos serviços, já é bastante problemática devido à falta de pessoal, no campo isso se agrava. São as ações das superintendências de trabalho e emprego, do Ministério Público do Trabalho e das secretarias estaduais e municipais de saúde que compõem a chamada Vigilância em Saúde do Trabalhador. Dos 5 mil municípios brasileiros, essa rede está implantada em cerca de 2 mil cidades, como mostra um relatório do Ministério da Saúde. O vazio não ocupado está justamente na zona rural, que exigiria uma ação bastante ágil e complexa. Costumo falar que, na zona rural, temos o SUS do boi e da soja.
Em todo o Brasil as secretarias de agricultura têm seus setores de defesa sanitária animal e vegetal, sejam institutos, departamentos, o nome que for, e que vigiam a saúde da pecuária e das culturas de exportação. Veja o caso do Mato Grosso, onde todos os 141 municípios dispõem de secretarias de agricultura com infraestrutura, com sede própria e frota de veículos, e que contam com agrônomos e técnicos agrícolas para visitar as fazendas mensalmente e ver se o boi foi vacinado contra a febre aftosa e o carbúnculo; se o algodão não está infestado de bicudo [nome popular de um tipo de besouro]; se a soja pegou ferrugem [nome popular de uma patologia vegetal]. Mas eles não entram na casa dos trabalhadores para ver se as crianças foram vacinadas, onde o acesso ao programa de imunização é bem pior. Se ocorrer um único caso de aftosa, o governo mobiliza exército, defesa civil, todo mundo, pois pode prejudicar as exportações. No entanto, quando é preciso fazer a vigilância em uma fazenda que notifica intoxicação aguda por agrotóxico não tem veículo, não tem gasolina, não tem gente.
Abrasco: O que falta, então, para uma devida implantação das ações em vigilância em saúde do trabalhador e da trabalhadora rural?
Wanderlei Pignati: Temos um processo de vigilância invertido e falta prioridade. Comumente, os casos de intoxicação aguda são subnotificados e só ficam na notificação. Deveria haver prioridade dos estados e dos municípios, com incentivo federal, para realmente implantar a vigilância do trabalhador na zona rural. Já tivemos várias discussões com os sindicatos dos trabalhadores rurais, com a CONTAG (Confederação Nacional de Trabalhadores da Agricultura) e entidades estaduais, mas a afluência é muito pequena, vide a implantação dos CEREST (Centro de Referência em Saúde do Trabalhador) regionais. Funcionam um pouquinho melhor no Sul do país, mas de maneira em geral bastante precária.
Seria a partir dos CEREST que se teria a ponte para fazer vigilância em saúde do trabalhador e vigilância do ambiente. O ambiente de trabalho do trabalhador rural já é o ambiente geral, intencionalmente contaminados e poluídos por agrotóxicos e fertilizantes químicos. Pulveriza-se por avião, trator e manualmente para atingir o que chamam de patologias rurais, ou seja, insetos e ervas daninhas. Só que, com isso, atingem todo o ambiente, incluindo a produção. Com isso, contamina-se o solo. Quando cai a chuva, atinge o lençol freático. A parte que evapora contamina o ar, ar este que o trabalhador respira. Uma das propostas que discutimos é a proibição desse uso intencional da pulverização. Pois, em ambientes controlados, há forma de mitigar e reduzir os danos e, quando acontece, é entendido como acidente. No campo não, é uma poluição intencional. Deveria mudar a legislação para melhor acompanhar e fiscalizar essa cadeia produtiva. A agricultura de exportação, com o uso indiscriminado de agrotóxicos e fertilizantes, é o maior agente poluente e contaminador do ambiente e de seus trabalhadores.
Abrasco: Como está o atual debate da legislação sobre agrotóxicos?
Wanderlei Pignati: Há no Congresso o debate da Política nacional de redução desse uso, que contemplasse vários pontos hoje já sistematizados no projeto de lei da Política Nacional de Redução de Agrotóxicos, a PNaRA, projeto apresentado pela nossa Associação (Abrasco) juntamente com a campanha permanente contra os agrotóxicos e pela vida e demais entidades.
Em contrapartida, o PL do Veneno quer ampliar e fragilizar vários processos de registro e controle. É um momento crítico, pois enquanto queremos reduzir, outros querem aumentar o uso, e com isso, piorar a contaminação do ar, da água, da chuva e, com isso, a aumentar a contaminação dos nossos trabalhadores e trabalhadoras, deixando marcas no sangue, na urina e no leite materno.
Abrasco: Por que o perigo dos agrotóxicos é tão difundido na imprensa e no meio científico, mas não ganha espaço nesse momento de eleições?
Wanderlei Pignati: Há pouca informação repassada para os consumidores. Pegue o PARA (Programa de Análise de Resíduos de Agrotóxicos em Alimentos), que deveria analisar 22 alimentos mais comuns à mesa das famílias. Os dados de 2013, 2014 e 2015 foram unificados e publicizado no boletim de 2015. Não se deveria esconder por vários anos como está a contaminação desses alimentos e o governo fez isso. Como a gente pode discutir consumo dessa forma? Temos um governo não democrático, pois não quer informar a sociedade. Assim acontece também com o Siságua (Sistema de informação de vigilância da qualidade da água para consumo humano). O último boletim que apresentou o nome dos municípios com elevado nível de contaminação por agrotóxicos na água foi de 2015, com dados de 2014. E, mesmo esse boletim, só trouxe em destaque o nome dos municípios acima do permitido, não mostrou os municípios que contêm agrotóxicos abaixo do permitido. Mesmo nesse limite permitido, estudos endócrinos apontam que qualquer micrograma pode disparar uma série de problemas de saúde, como má formação fetal, cânceres e outros. Esse limite máximo permitido a gente tem de discutir.
Abrasco: A preocupação e as imagens associadas ao debate dos agrotóxicos concentram-se nas frutas, legumes e verduras, mas as pessoas esquecem-se da água. Quais são os atuais dados de contaminação da principal fonte de vida do planeta?
Wanderlei Pignati: Na última safra (2017/2018), foi utilizado nas lavouras do Brasil cerca de 1 bilhão de litros de agrotóxicos diluídos em água na proporção de 1/100. Ou seja foram pulverizados 100 bilhões de litros de calda tóxica de agrotóxicos nas lavouras do Brasil. A portaria de potabilidade da água diz que pode ter até 500 microgramas por litro. Na União Europeia (UE) é 00,1 micrograma por litro. Do 2-4 D, aqui pode-se ter até 30 microgramas por litro; lá é 0,01 também. Aqui pode-se ter até 27 tipos de agrotóxicos diferentes e a água ainda é potável; lá é no máximo 5 agrotóxicos, e com essa disparidade de proporção. Aqui admite-se traços de até 15 metais pesados, até 15 tipos de solventes e 7 tipos de saneantes domésticos, como detergentes e ceras. Não há água nova no mundo. A primeira portaria de potabilidade da água, de 1977, permitia até 12 tipos de agrotóxicos. A portaria atual, de 2011, permite até 27 tipos que a água ainda é considerada potável. Por pressão das indústrias químicas e do agronegócio, o governo foi soltando portarias e legalizando esses níveis de limites máximos permitidos na água e nos alimentos. Quando unificada, a EU reviu seus protocolos e hoje caminha para uma transição agroecológica. Não pode comprar muitas coisas, mas compra nossos orgânicos. Hoje o Brasil é o maior produtor de orgânicos do mundo, notadamente café, álcool e açúcar. Fala-se que se paga mais caro. É mais caro ou mais barato um alimento sem agrotóxico? Os orgânicos eram muito mais caros há 10 anos, hoje, os preços estão comparativamente quase o mesmo preço, com alguns ainda mais caros, pelo uso de mão-de-obra. Agora, ele é realmente mais caro? Quanto custa à sociedade um câncer? Quanto custa gerações com má formação fetal? É o SUS quem vai tratar.