A demora ou a completa falta de pagamento envolve parcela significativa de operadoras de saúde. De 1.551 que receberam cobranças para ressarcir o SUS, 444 não pagaram nada ou menos de 1%. Sobre o assunto, Folha de São Paulo entrevistou o vice-presidente da Abrasco, professor Mário Scheffer. Confira:
Cerca de 30% das operadoras de planos de saúde alvos de cobrança de ressarcimento por atendimentos feitos a seus usuários no SUS ainda não pagaram nem 1% do valor que devem à rede pública. Os dados de 2001 para cá foram tabulados pela Folha a partir de planilhas da ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar), órgão regulador e responsável por exigir esse valor de volta ao SUS. A cobrança ocorre todas as vezes em que a agência, por meio de cruzamento de dados do Ministério da Saúde, verifica que um paciente foi atendido na rede pública para um serviço que poderia obter na rede suplementar -ou seja, dentro do que foi contratado com o seu plano de saúde.
Desde 2001, quando iniciou o monitoramento, até julho deste ano, foram cobrados R$ 2,1 bilhões de ressarcimento ao SUS por esses atendimentos. Na prática, 40% desse valor não foi pago nem parcelado para recebimento futuro, o equivalente a R$ 826 milhões (em valores nominais). A demora ou a completa falta de pagamento envolve parcela significativa de operadoras de saúde. De 1.551 que receberam cobranças para ressarcir o SUS, 444 não pagaram nada ou menos de 1%. Há outras 125 que pagaram ou parcelaram entre 1% e 9% e 210 que acertaram de 10% a 49% —ou seja, menos que a metade do valor. Do total, 372 pagaram ou se comprometeram a pagar em parcelas tudo o que devem —outras 154, acima de 90%.
Lideram o ranking de operadoras com maiores débitos sem pagamento Hapvida (R$ 40 milhões), Central Nacional Unimed (R$ 35 milhões) e Unimed BH (R$ 24 milhões). Grupos de planos de saúde atribuem a falta de pagamento a uma discordância sobre quais procedimentos podem ser cobrados, quais deveriam ter sido feitos ou até mesmo em relação ao próprio processo de ressarcimento.
A cobrança é prevista desde a lei 9.656, de 1998, que trouxe regras para os planos de saúde. “É um instrumento de justiça contábil, criado para evitar que planos se sintam motivados a se desobrigar de coberturas e enviar seus pacientes ao SUS”, afirma Mário Scheffer, professor da Faculdade de Medicina da USP.
Na prática, porém, as notificações de cobrança só começaram em 2001. Ainda assim, só para procedimentos mais simples —serviços de alta complexidade, como hemodiálises e quimioterapia, por exemplo, só foram incluídos nas análises em 2015.
“Há um passivo imenso que não foi cobrado. E do pouco que é cobrado, muito não é quitado”, diz Scheffer.
Depois da identificação dos atendimentos, o processo prevê a notificação das operadoras, que podem contestar os valores em até duas instâncias administrativas antes de serem cobradas. Desde 2001, foram notificados 3,1 milhões de atendimentos na rede pública a usuários de planos de saúde, valor que equivaleria a R$ 5,5 bilhões —desse total, cerca de 80% foram alvo de contestação pelas operadoras. Entre as contestações, 28% foram aceitas e tiveram a cobrança cancelada. Segundo operadoras e a ANS, as principais justificativas são o período de carência dos contratos ou atendimentos feitos em cidades fora da abrangência do plano. Outras 41% foram rejeitadas e enviadas à cobrança e 30% ainda estão em análise —só essa parte pendente equivale a R$ 1,4 bilhão.
Entre estratégias para aumentar o ressarcimento, a ANS diz apostar na cobrança de juros, iniciada em 2015, no envio de notificações eletrônicas e na inclusão do índice de pagamento em avaliações de qualidade dos planos. Alvos de cobranças de ressarcimento ao SUS, as operadoras de planos de saúde atribuem os casos de demora ou falta de pagamento a discordâncias sobre quais procedimentos deveriam ser cobrados, ao tipo de atendimento prestado na rede pública ou até em relação à própria legalidade do pagamento. “O ressarcimento ao SUS é uma ilegalidade. Só fico sabendo que meu paciente está no SUS quando recebo a conta”, diz Pedro Ramos, diretor da Abramge (Associação Brasileira de Planos de Saúde).
O tipo de atendimento efetuado é outro impasse. “A maioria dos hospitais do SUS são privados, que adoram pegar o convênio médico porque fazem coisas que precisam e que não precisam”, afirma ele, que também diz ver fraudes no processo. Segundo Ramos, situações como essas levam muitas operadoras a recorrerem à Justiça —um desses processos, oriundo do recurso de uma operadora, aguarda análise no Supremo Tribunal Federal. Já Solange Mendes, presidente da FenaSaúde, federação que representa algumas das maiores operadoras do país, afirma que as empresas “cumprem a legislação” e “usam os meios legais para questionar eventuais indenizações indevidas”. Solange lembra que nem todos os atendimentos são passíveis de ressarcimento —por exemplo, casos em que o usuário do plano de saúde ainda está no período de carência do contrato ou para alguns tipos de transplantes.
Posição semelhante à das associações foi informada pelas três operadoras citadas. A Central Unimed Nacional diz ter “uma reserva integral para o valor em discussão, pois tem o direito de recorrer à Justiça e questionar valores ou cobranças que não estejam de acordo com a lei”. A Unimed BH diz que tem feito depósitos judiciais de parte dos valores exigidos e tratado o tema com a ANS, “em função de questionamentos técnicos” sobre a cobrança”. A Hapvida não quis comentar os valores, mas disse concordar com a Abramge.
Defensor de propostas que acenam ao setor privado, como a oferta de planos de saúde mais baratos e com cobertura reduzida, o ministro Ricardo Barros (Saúde) também tem defendido criar medidas para acelerar o ressarcimento ao SUS pelos planos. Uma das possibilidades já citadas por Barros é que hospitais que prestam serviços ao SUS façam um contrato prévio com as operadoras. A ideia é definir quais procedimentos podem ser cobrados “automaticamente”, e por qual valor, caso um usuário de plano busque a rede pública para atendimento. A iniciativa tem gerado preocupação entre especialistas e representantes de planos. Um dos impasses é que o processo de ressarcimento sairia das mãos da ANS para ser definido entre os planos e as unidades da rede.
Para Fátima Siliansky, especialista em economia política da saúde, isso pode gerar um conflito de interesses ao fazer hospitais terem que identificar se estão atendendo usuários de planos. “Qual a tendência? Se a tabela é melhor, é querer privilegiar a pessoa que tem plano porque vai trazer mais dinheiro”, diz Fátima, que já foi diretora-adjunta da ANS.
Mesma preocupação tem Mário Scheffer, professor da USP e vice-presidente da Abrasco – Associação Brasileira de Saúde Coletiva, para quem a medida pode criar uma “dupla porta” em hospitais públicos —uma para pacientes com plano e outra para quem não tem. “Onde tem dupla porta, tem dois agendamentos. Isso vai criar dificuldade maior para quem só pode recorrer ao SUS.”
Representantes dos planos de saúde também fazem ressalvas. “É uma proposta que não tem condição nem amparo na lei. Não tenho que mandar paciente meu para o SUS, mas sim para minha rede própria ou credenciada”, diz Pedro Ramos, da Abramge. Segundo Ramos, a associação irá propor ao governo que o ressarcimento só passe a ser feito com duas condições: que o plano seja avisado imediatamente após a entrada do paciente no SUS e que, se possível, possa removê-lo e levá-lo a outro hospital. “Em caso de urgência, o SUS tem que atender, mas avisar a operadora, porque na hora que o paciente estabilizar, eu tiro de lá. Se não avisar, não pago”, afirma. Já a FenaSaúde, que também representa operadoras, diz considerar “imprescindível aprimorar a análise de quais procedimentos devem ser realmente pagos.” Questionado sobre as críticas, o ministro evitou comentar possíveis efeitos da medida e diz aguardar resultados de estudos sobre a viabilidade da mudança.