Em 27 de setembro de 1979, um encontro em Brasília (DF) entre pesquisadores, profissionais e estudantes marca oficialmente o início da história da Abrasco. Durante a 1ª Reunião sobre Formação e Utilização de Pessoal de Nível Superior na Área da Saúde Coletiva, realizada na sede da Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS/OMS), aconteceu a Assembleia de Fundação da entidade, formalizando a constituição da Abrasco. O objetivo era criar uma associação que fizesse a interlocução na comunidade científica e fosse um espaço de diálogo e troca entre os programas de pós-graduação em Medicina Social, Medicina Preventiva e Saúde Pública. 45 anos depois, além de cumprir os objetivos delineados pelos fundadores, a Abrasco contribuiu para a consolidação do campo da Saúde Coletiva, a formação de milhares de profissionais, e se tornou uma das principais entidades na luta pela defesa ao direito universal à saúde, pelo fortalecimento do Sistema Único de Saúde (SUS) e contra as iniquidades sociais.
O surgimento da Abrasco é um fato histórico por definição, como descrito pelo historiador Carlos Paiva, o médico e sanitarista José Paranaguá de Santana e pela socióloga e atual ministra da Saúde, Nísia Trindade Lima, responsáveis pela organização do livro que celebrou os 35 anos da entidade. Afinal, na época, o Brasil vivia sob uma ditadura militar e o movimento da Reforma Sanitária lutava por dignidade para a população brasileira, que sofria com a fome, doenças, epidemias e problemas sociais agravados pelo regime. Carlos Paiva destaca a importância do surgimento da Abrasco na redemocratização do Brasil.
“O processo de construção da Abrasco não apenas coincide, mas incide na própria dinâmica de construção institucional da democracia no país. A Associação, junto com outras organizações da chamada sociedade civil, como o Cebes, a ABI, a SBPC e outras, atuou em diferentes espaços institucionais em favor da retomada da vida democrática no Brasil. A contribuição da Associação foi especialmente importante porque, como parte fundamental do processo de reforma sanitária, a Abrasco compreendeu, acertadamente, que a democracia que se instituía naqueles anos 1980 não deveria se reduzir a sua dimensão estritamente formal”.
À época, além do contexto de forte repressão política, a assistência médica só era acessada por pessoas com carteira assinada que contribuíam com a previdência ou tinham como arcar com os serviços privados de saúde, relegando milhões de brasileiros a própria sorte ou aos hospitais filantrópicos. A saúde passaria a ser considerada “um direito de todos e um dever do estado”, somente em 1988, conforme o artigo 196 da Constituição Federal, quase 10 anos depois da criação da Abrasco. E o SUS só seria regulamentado em 1990, com a Lei Orgânica da Saúde.
Assim, além de organizar e articular pontes entre lideranças da Reforma Sanitária, uma das primeiras contribuições da Abrasco como entidade, junto ao Centro Brasileiro de Estudos em Saúde (Cebes), foi auxiliar na concepção do SUS e na inclusão da saúde como direito na Constituição de 1988. Além da 8ª Conferência Nacional de Saúde, em março de 1986, um dos principais fóruns de articulação foi o 1º Congresso Brasileiro de Saúde Coletiva, promovido pela Associação de 22 a 26 de setembro de 1986, no Rio de Janeiro, cujo tema principal foi Reforma Sanitária e Constituinte, Garantia do Direito Universal à Saúde.
Na declaração final do evento, que contou com 2 mil participantes, os tópicos acordados na 8ª Conferência foram ratificados, com destaque para o direito universal à saúde como garantia constitucional.
“[…] as políticas sociais continuam sendo equacionadas a partir de critérios de eficiência econômica e como mera decorrência de investimentos do setor produtivo da economia, enquanto a nossa riqueza continua a ser canalizada para o pagamento da dívida externa. Acresce-se a isso o deliberado sucateamento do setor público, que serve como justificativa de uma falaciosa concepção da natureza intrinsecamente ineficiente desse setor. As possibilidades de reversão desse quadro implicam a contínua mobilização e organização das forças sociais comprometidas com a luta pela implantação de uma Reforma Sanitária e pela garantia constitucional do direito à saúde como dever do Estado.”
Declaração final do 1º Congresso Brasileiro de Saúde Coletiva (1986).
Os limites e as interseções: a consolidação de um campo do conhecimento
A trajetória da Abrasco se entrelaça com a própria história da Saúde Coletiva e a sua consolidação enquanto campo de conhecimento. Desde sua fundação, a instituição atua como entidade científica, fomentando a produção e a circulação do conhecimento e a formação profissional na área. Os congressos da Abrasco se tornaram um espaço fundamental de criação de redes, fomento à pesquisa e intercâmbios dos mais diversos, que resultam em contribuições para aprimorar políticas públicas no âmbito da saúde. Primeira pessoa a desempenhar o papel de secretário executivo da Abrasco, o médico, sanitarista, pesquisador e professor Paulo Buss destaca a importância dos eventos organizados pela entidade para a consolidação do campo da Saúde Coletiva, bem como a criação das comissões e grupos de trabalho.
“A realização dos congressos, a criação das comissões de especialistas da Abrasco e dos os Grupos de Trabalho (GTs) foram demarcatórios e definidores para a consolidação do campo da saúde coletiva . Além disso, esse avanço se deveu a essa persistência intensa de que a construção do campo passaria por um esforço disciplinar com especialistas sendo responsáveis pelas elaborações.”
Ao longo dos últimos 45 anos, foram 37 eventos desse tipo realizados. Além dos congressos específicos para cada uma das três áreas da Saúde Coletiva: Ciências Sociais e Humanas em Saúde, Epidemiologia e Política e Planejamento de Gestão da Saúde, os congressos brasileiros de Saúde Coletiva, chamados de Abrascão, reúnem pesquisadores, profissionais de saúde, estudantes e ativistas de todo o campo da Saúde Coletiva, o que o torna um fórum importante, especialmente para atuação e articulação políticas.
Os frutos plantados ao longo da atuação da Abrasco em seus primeiros anos de atividade renderam duas conquistas consideradas marcos importantes para a institucionalização do campo: a criação da área de Saúde Coletiva na Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), em 1993; e do Comitê de Assessoramento de Saúde Coletiva e Nutrição no Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), em 2000.
Além disso, para auxiliar na difusão dos estudos empreendidos no campo, a Abrasco criou dois periódicos científicos: a Revista Ciência & Saúde Coletiva, em 1996; e a Revista Brasileira de Epidemiologia, em 1998, ambas com suas edições disponíveis em Acesso Aberto.
A expansão dos programas de pós-graduação e a criação dos cursos de graduação são mais uma evidência do fortalecimento da área enquanto campo de conhecimento. Hoje, são 23 cursos de graduação e 97 programas de pós-graduação, sendo 55 acadêmicos e 42 profissionais. Estas mudanças no campo desencadearam uma reforma institucional da Abrasco, marcada pela alteração de nome da entidade, que em 2011 passa a se chamar: Associação Brasileira de Saúde Coletiva. Além da alteração do nome, a instituição expandiu e diversificou sua atuação e composição, ganhando mais pluralidade em suas ações.
Coordenadora do Fórum de Graduação em Saúde Coletiva da Abrasco, a professora Lívia Souza destaca a importância das ações da Associação que contribuem com a formação dos futuros profissionais, pesquisadores e sanitaristas brasileiros.
“Enquanto uma Associação profundamente implicada com o direito à saúde e com os princípios da Reforma Sanitária Brasileira, a Abrasco impulsionou o desenvolvimento acadêmico, a formação e a valorização dos sanitaristas, reconhecendo-os como profissionais estratégicos para o fortalecimento do SUS. A proposta da criação dos cursos de graduação em saúde coletiva no Brasil, que tinha entre os principais pressupostos a antecipação e a qualificação da formação de novos sujeitos com referenciais ético-políticos e com um amplo corpo de conhecimentos e de práticas, teve na Abrasco um importante espaço de debates, reflexões e construção”.
A história recente e as perspectivas do futuro
É fundamental destacar mais um capítulo da história da Abrasco: sua atuação no enfrentamento da pandemia de COVID-19 e da instabilidade política e social no país durante o último governo. Desde o início da crise sanitária, a Abrasco assumiu um grande protagonismo político, trabalhando para produzir respostas e enfrentar a negligência do Governo Federal, especialmente do Ministério da Saúde da época. Juntamente com outras entidades da saúde, a Abrasco articulou a Frente Pela Vida, um movimento que desempenhou um papel essencial para garantir que a população brasileira fosse vacinada contra a COVID-19.
A necessidade de constante atualização e a defesa de seus valores são prioridades das gestões abrasquianas. Como entidade científica, a Abrasco continua a atuar no fomento à pesquisa e na difusão do conhecimento em Saúde Coletiva, contribuindo para a formação dos futuros sanitaristas brasileiros. Além disso, tem apoiado fortemente a elaboração de políticas públicas que fortalecem o SUS e combatem as iniquidades sociais no Brasil.
O presidente da entidade, o pesquisador Rômulo Paes de Souza avalia que a Abrasco, ao longo dos 45 anos de existência, se mantém relevante e atenta às transformações e ações necessárias para construir uma sociedade mais justa.
“Nesses 45 anos de existência, a maior contribuição da Abrasco sempre esteve no seu impulso transformador. Mais recentemente, a Abrasco contribuiu para a resiliência do SUS contra as ações deletérias do governo passado. A missão presente da Abrasco é lutar pelo avanço do SUS conectando-o com as possibilidades contemporâneas de realizar a promoção e prevenção, e prover bens e serviços de saúde de forma equitativa, soberana e resolutiva”.
Neste aniversário de 45 anos, a Abrasco agradece a todas as pessoas que fizeram e fazem parte dessa história e comemora as conquistas e contribuições para o campo da Saúde Coletiva e para a saúde pública brasileira. Nesta celebração, convidamos todas as pessoas associadas e a comunidade da Saúde Coletiva a seguir conjuntamente na ampliação do diálogo com diversos atores, na reunião de esforços para construir uma sociedade mais justa, plural e com um SUS fortalecido.