A fala do Ministro da Saúde Ricardo Barros na Faculdade de Medicina da USP no dia 16 de maio deve ser compreendida como uma declaração de princípios do governo que ele representa. São conteúdos reveladores de uma visão que delimita um campo de ação política distinto daquele onde militam os defensores de políticas sociais de Estado voltadas para a redução das desigualdades históricas e estruturais na sociedade brasileira.
O ministro foi didático ao mencionar o exemplo da Grécia e mais ainda ao condicionar o financiamento do SUS ao que ele chama de repactuação da Previdência. Os três elementos apontados por ele, quais sejam, a crise fiscal dos países periféricos da Europa, o (sub) financiamento do sistema de saúde brasileiro e o uso político do orçamento da previdência não aparecem juntos por acaso. O ministro nos faz o favor de colocar sobre a mesa a exata dimensão da crise que nos atinge ao juntar os elos de uma corrente que se inicia no circuito internacional de dominância financeira e pretende se espalhar pelo maior orçamento da área social no Brasil, a Previdência.
O caso grego é dramático e ilustrativo. Uma tragédia social devastadora em um país que é o berço cultural do ocidente, embora esteja situado na sua fronteira oriental, longe do centro de decisão política e econômica dos países centrais. O que ocorre na Grécia nesse momento é o paroxismo de um padrão de desmonte do pacto social democrata do pós-guerra observado em todo o mundo e levado a efeito com peculiaridades em cada formação social específica.
Os gregos foram preconceituosamente acusados de perdulários e sacrificados no altar da austeridade fiscal em nome da salvação dos seus credores. Quando o Ministro da Saúde diz que vamos precisar de uma repactuação no estilo grego, ele está dizendo que concorda com o sacrifício imposto aos trabalhadores assalariados e com o uso dos recursos do orçamento público para pagamento de despesas financeiras em detrimento dos gastos sociais, mas não só isso. Concorda também com a redução dos salários em benefício do capital e com a eliminação de postos de trabalho que serão depois oferecidos de volta com remunerações inferiores e sem nenhuma garantia de estabilidade.
O ex-ministro das finanças grego Yanis Varoufakis, personagem atuante nos momentos mais dramáticos da negociação com os agentes financeiros globais, é enfático em seu diagnóstico sobre a crise atual. Ele considera que as políticas de recorte social democrata baseadas em pactos amplos entre capital e trabalho levadas a efeito como estratégia de contenção social em tempos de guerra fria estão esgotadas. O Estado de Bem-Estar Social, que nem sequer chegou a aportar em terras brasileiras, não tem perspectiva política global sustentável. Do mesmo modo, seguindo uma linha escatológica, ele pondera que, se o comunismo de Estado acabou com a queda do muro em 1989, também o seu irmão siamês, o capitalismo de mercado (com apoio do Estado) repousa na mesma vala comum das utopias românticas europeias do século XIX. A dominância financeira em todos os espaços da vida social, e não apenas nos limites estritos das instituições financeiras tradicionais é a voga que a experiência empírica nos impõe ainda que sem um nome de batismo consagrado, mas como realidade totalitária de uma distopia desimpedida de contrapontos ou alternativas. O breve hiato histórico da experiência social democrata do pós-guerra evoluiu para uma situação fora de controle onde não há margem mínima para negociação.
Se a Grécia ocupa um espaço econômico periférico na Europa, o Brasil, ainda que efetivamente provido de recursos naturais e humanos em um vasto território, ocupa um nível de desenvolvimento econômico e social bem aquém de suas potencialidades. Aqui, a dominância financeira assume uma característica peculiar em sua relação com o orçamento público. São os títulos públicos da dívida interna que alimentam o circuito de valorização de capital a juros sem nenhuma contrapartida visível para o cidadão que os financia. Empenha-se a metade do Orçamento Geral da União no pagamento de juros e amortizações, ou seja, meio Brasil já está sacrificado no altar da austeridade fiscal com um custo financeiro exorbitante.
Não faz muito tempo, nos anos dourados da privatização de ativos públicos na década de 1990, ouvimos uma justificativa falaciosa para a alienação do patrimônio nacional. Livres dos mastodontes perdulários, o Estado, mais leve e eficiente, teria condição de se ocupar com o provimento de saúde, educação e segurança de qualidade e, a iniciativa privada, de forma profissional e moderna, trataria de inovar criando emprego e renda em um ciclo virtuoso. Quem acompanhou aquele período sabe que isso não aconteceu.
Entretanto, mais uma vez se apresenta a retórica da privatização de ativos públicos e a promessa de um futuro melhor depois de um breve período de aperto. Ao condicionar o financiamento do SUS à repactuação da previdência o ministro lança mão de uma falácia denunciada pela nossa história recente. Depois de afirmar que os direitos sociais previstos na Constituição de 1988 não cabem no orçamento, sugerindo, portanto, que o SUS seja desidratado, o ministro agora diz que não pretende redimensionar o sistema, mas que só pode assegurar recursos para a sua manutenção depois da autorização do seu colega Ministro da Fazenda, detentor da última palavra em questões substantivas no atual governo.
O fato mais grave, do ponto de vista político institucional, é a concretização de um processo que já se delineava há alguns anos e agora resulta na completa subordinação do orçamento da Previdência ao arbítrio do Ministro da Fazenda que, para todos os efeitos, bem poderia acumular também o cargo de Presidente interino. Essa façanha representa antes de mais nada uma conquista estrondosa no plano ideológico, haja visto o silêncio geral verificado em toda extensão do espectro político. Naturalizou-se a visão de que a burocracia fazendária é o leito ideal para a política social previdenciária. Os cardeais do IAPI venceram mais uma vez.
Repactuação da previdência significa fundamentalmente estabelecer um teto remuneratório baixo e abrir ainda mais o negócio de previdência complementar, colocando nas mãos da plutocracia financeira mais do que apenas meio Brasil. Colocando a poupança privada da massa de trabalhadores brasileiros, inclusive servidores públicos, sob a tutela e os riscos inerentes às operações financeiras levadas a cabo por operadores remunerados em comissão.
A leitura mais acurada que se pode fazer da fala do ministro após a sua retificação contorcionista é a seguinte: não se trata de extinguir o SUS, mas de mantê-lo no seu padrão histórico de subfinanciamento, agora em um patamar ainda mais baixo. Os recursos limitados serão concentrados para consagrar a sua função de conveniência como instância estatal de última linha no resseguro para despesas assistenciais catastróficas, beneficiando assim o esquema de comércio de planos e seguros de saúde e os prestadores mais especializados.
O Orçamento da Seguridade Social, interditado desde o nascedouro, agora se desfaz em um aprofundamento da separação entre saúde, previdência e assistência social. A DRU, ampliada e reproduzida nos orçamentos estaduais e municipais multiplica seus efeitos, ou seja, assegura mais recursos públicos para os credores da dívida e menos para políticas sociais.
Considerando que o governo da presidente afastada, embora com diferenças de ênfase e estilo assumiu como pauta a reforma da previdência, a prorrogação da DRU e o corte no orçamento da saúde já em execução em 2016 fica mais fácil de entender o significado e a amplitude da dominância financeira sobre o orçamento público brasileiro e o tanto que nos distanciamos das potencialidades de bem-estar social jamais realizadas.
O que estava ruim ficou pior por que o novo governo se constituiu a partir de um processo político violento e espúrio do qual o novo ministro é a expressão acabada. Os recuos e contorcionismos retóricos praticados demonstram, por um lado, os limites e a insegurança de quem se equilibra em bases precárias, mas por outro lado, o espantalho do exemplo grego tem o condão de enquadrar as iniciativas heterodoxas no nascedouro.
Uma rápida deterioração das condições de reprodução social da força de trabalho, entretanto, pode tirar o verniz de legitimidade atribuído ao novo governo e revigorar a riqueza histórica da formação social brasileira na construção de uma nova experiência de sociabilidade. Não sendo assim, resta-nos a desilusão da distopia totalitária que pode ser um limite intransponível mesmo para os beneficiários imediatos desse movimento regressivo.